É um jogador, com o seu recheio a reboque, quem faz uma posição, o contrário será uma falácia e quando Rúben Amorim invocou as características dos jogadores como explicação das “oscilações” a que nenhuma equipa está imune, a razão dava-lhe respaldo. Se não desse, a prova de algodão do relvado encarregar-se-ia de tratar dessa tarefa e no bem-cuidado tapete de Famalicão viu-se que o Sporting será uma coisa com Pedro Gonçalves e outra, bastante diferente, sem o pequenote transmontano por quem o treinador nutre um especial carinho.
Rapaz de toques simples na bola, desprendido de artifícios nas fintas, o futebolista que se convencionou chamar Pote cresceu a médio, virou extremo há uns anos aquando da chegada ao Sporting, mas a sua especial mutação, a peculiar jigajoga que tem no seu ADN de jogador, fazem dele o híbrido atacante que hoje arranja vida nas sombras.
É nos lados cegos, nos espaços curtos, nos esconderijos das visões periféricas dos adversários onde Pote gosta de aparecer e mexendo por entre as costas dos médios do Famalicão e as barbas dos defesas lá se foi entretendo, sagaz a dar-se um passe aqui, matreiro a ir pedir a bola depois acolá, em distâncias curtas e pedinte de gente que venha daí. Quando Pote joga, é ele quem decide por onde o Sporting sobrecarrega a jogada quando se cola a Francisco Trincão para uma tabela; é ele desengatilhar o ponto, com um toque a auscultar uma nesga de oportunidade, onde as trocas de passes da equipa viram esfomeadas de baliza; é ele a aproximar-se de Gyökeres e a baralhar as antenas de quem os tem de marcar.
Tê-lo desencanta os ataque mais combinativos do Sporting e a geometria descritiva aplicada ao futebol, onde, às tantas, Daniel Bragança recebeu a bola e rodopiou com ela, já o seu pescoço tinha rodado, os olhos fitado ao longe, e cortou um passe por alto rumo à corrida de Nuno Santos na esquerda, canhoto que de primeira tirou um cruzamento rasteiro em que Gyökeres tocou ligeiramente e desviou a bola para Pote a rematar para golo. Seria mentiroso devido a um fora de jogo, mesmo motivo que cortou as vazes à única vez que o engenhoso Famalicão, a chamar a pressão dos leões para depois a saltar com um passe vertical, também marcou na ressaca de uma vistosa jogada. O avançado Aranda e a sua cabeça descolorada adiantaram-se em demasia antes do cruzamento de Gil Dias.
Com Pote em campo é uma coisa, mesmo que essa coisa não faça do transmontano o melhor, sequer o jogador com as ações mais influentes.
Mas é com o seu vagabundear na certa ordem da equipa com a bola que Trincão engrandece o seu rendimento por ter um amigo para privar no mesmo dialeto, ou Bragança intensifica o seu pé na gestão da bola por ter Pote a espreitar no centro-esquerda. Fora um curto período, após os 20 minutos, em que o Famalicão sacudiu um pouco a intensa pressão dos leões assim que perdiam a posse, valendo-se a calma de Zaidu Youssouf e a esperteza de Gustavo Sá a fugir a ladrões, a equipa da casa sofreu para se espreguiçar do seu bloco baixo.
Na larguíssima primeira parte com 55 minutos, pródiga em paragens costumeiras (faltas) e nas indesejáveis (lesões de Nuno Santos e de Gustavo Sá), o Sporting careceu do último passe, do rasgo que desbravasse o matagal de pernas a protegerem a baliza. Perigoso a sério só um ataque rápido, pela direita e já quase no intervalo, acelerado pela inspiração de Trincão, tão encantadora de ataques que a bola retornaria a si após a cruzar e a rematou, por duas vezes. As mãos de Zlobin negaram-no e onde elas não alcançaram estaria, na recarga, a cabeça do capitão Mihaj.
Era a alvorada de uma avalanche.
Reatada a partida, o Sporting injetou outra pressa na sua feitura das jogadas, dando outra velocidade aos passes com que criava engodos para os adversários se atreverem a sair um pouco do bloco e explorar as avenidas nas alas. A formiga de Pote rematou, o intempestivo Trincão também, Gyökeres testou igualmente o guarda-redes e a equipa inclinava as jogadas à direita, cravando a pujança do seu adolescente que toma decisões de adulto.
Foi a paciência de Geovany Quenda a esperar pela corrida de Morita, vindo de trás para atacar a linha defensiva com uma diagonal, e a meter o passe no japonês, que atrasou o seu de modo a servir o cidadão sueco mais honorário do Sporting. Com a bola na área, Gyökeres quis furá-la um pouco mais, carregando-a pequena área dentro antes de fuzilar as redes do teto da baliza. O sueco, sempre no seu jeito furibundo, fez o 14.º golo do avançado na época, encurtando para três as equipas do campeonato - as outras, agora, são Estoril Praia, Santa Clara e Estrela da Amadora - contra as quais não marcou.
Não seria aí, não já, que o ímpeto do Sporting murchou, outra investida de semelhante a outras, com um último passe bloqueado ou desviado, seguido de uma segunda bola adquirida, teve Bragança a querer resolver o berbicacho à bomba e estava Pote a esbracejar, refilão, com a tentativa, quando os 17 anos de Quenda ajeitaram a terceira vaga com o seu pé esquerdo (63’). Só a estreia goleadora da joia vinda de Alcochete, mais a mão gestora de Rúben Amorim, serenaria os leões.
Com a vantagem coincidente na hora de jogo, o treinador soltou a vaga de substituições, um hábito necessário mais do que pertinente pela sucessão de jogos a cada três ou quatro dias que se asseverará um pouco mais nas próximas semanas. Daniel Bragança avançou para fazer as vezes de Pote na frente, depois retornou ao meio-campo, Geny Catamo trocou de lado permitindo a Maxi Araújo, para variar, experimentar-se como ala esquerdo e ver a baliza de frente; o cristalino St. Juste teve mais uns minutos e Conrad Harder deu descanso, mais tarde, a Bragança para o médio ainda ir ao banco. Sem dosear esforços, as gentes iam e vinha e Gyökeres permanecia em campo.
Esta rijeza do sueco imune a cansanços é invejável, dá a impressão de o Sporting ter um avançado que dispensa os atos de gestão que entreabriram, num par de momentos, avanços do Famalicão no campo pelas ações certeiras de Mathias de Amorim, luso-francês de 19 anos que deu energia ao meio-campo caseiro e viu Mario González intrometer-se no caminho do seu remate, o único perigoso da equipa na segunda parte. Serviu de alarme ao Sporting, visitante que reassentou o seu jogo, recolocou a coleira na bola e a domou a seu bel-prazer, mandão e calmo a viver no campo onde Gonçalo Inácio, a cruzamento de Catamo, deixaria um terceiro golo (86’) já as substituições tinham todas encaixado no seu sítio.
Houve ligeiros tremeliques, umas quantas veleidades concedidas a meias com rasgos de competência de um tímido Famalicão, mas invejável é também a constância nas exibições do Sporting, rodem os jogadores que forem, haja as caras disponíveis que houver. Com umas ou outras características, os leões têm todas as nove jornadas deste campeonato riscadas com o lápis de cor da vitória e garantiu, na véspera, Rúben Amorim que não vão “passear na Liga”, pouco após confessar sentir-se “invejado” porque “não há nenhum treinador com a estabilidade e autonomia”.
Rimou e cantou Ângelo Firmino, em tempos idos, no seu cognome artístico de Boss AC, que a inveja é um sentimento muito feio, a cantar explicou o que a viver se aprende e de acordo, será verdade. Não há beleza a invejar as posses de outros. Mas o que mais reluz no Sporting, mais do que privilégios gozados pelo seu treinador no dia-a-dia, fruto dos seus feitos, acontece em campo. O invejável está à vista de toda a gente.