Patrícia Sampaio estava numa bolha. In the zone, como se diz em inglês. Criou um espaço mental só dela, refugiou-se nele como quem entra numa fortaleza e foi competir. O contexto não importava, as adversárias eram secundárias, o dia era dela. Dela e de uma medalha que a judoca de 25 anos se convenceu que conquistaria.
Por agora, “ainda não parece real”. Soa tudo a “sonho”, porque tudo “era um sonho”. Mas, o sonho, o objetivo da medalha, a primeira para Portugal em Paris 2024, a 29.ª da história olímpica nacional, teve as suas raízes no transe competitivo em que a natural de Tomar entrou, parecendo possuída por alguma força sobrenatural que a faz ter o triunfo nos olhos.
Esteve sempre muito “decidida”, diz. O “foco” e a “concentração” não foram perdidos mesmo depois de perder, na meia-final, contra a italiana Alice Bellandi. “Saí do combate, limpei a cabeça, fui para o seguinte como nova, o que foi muito importante”, descreve, dando a fórmula para, no duelo pelo bronze, superar a japonesa Takayama Rika.
Uma cabeça limpa. Uma cabeça sem nada. Hoje, neste 1 de agosto já histórico para o judo nacional, o verdadeiramente importante estava na mente de Patrícia. Lá residia o feitiço decisivo para este pódio.
“Hoje estava a lutar comigo mesma. Estava a lutar contra bonecos sem cara. Fechava os olhos, não ouvia público, não ouvia nada. Era só eu e as tarefas que tinha de fazer.”
Patrícia Sampaio chega à zona mista da Arena Champ-de-Mars uns 15 minutos depois de conquistar o bronze. Teve tempo de trocar um longo abraço com o irmão, Igor Sampaio, a pessoa que a influenciou a seguir o judo e um dos treinadores que mais a acompanha.
Foi efusivamente cumprimentada por Telma Monteiro, assumindo Patrícia que é “gratificante” juntar-se ao clube dos medalhados do judo nacional, o grupo dos bronzes de Nuno Delgado em Sydney 2000, de Telma no Rio de Janeiro 2016, de Jorge Fonseca em Tóquio 2020. Agora também é de Patrícia Sampaio em Paris 2024.
De manhã, Sampaio bateu, rapidamente e com autoridade, Zeddy Cherotich, Madeleine Malonga e Zhenzhao Ma. A segunda, francesa, contou com o ruidoso público da casa. Os gauleses estão a ter um grande embalo nestes Jogos graças ao grande apoio que têm em todas as modalidades, empurrando-os para números de medalhas muito acima do que vinha sendo normal.
Mas Patrícia nunca os ouviu. Fechava os olhos e nada. Era só ela, o seu vazio, o seu mundo, o seu transe.
Depois dos triunfos matinais, havia umas três horas de intervalo até aos próximos combates. Para Sampaio, foi “uma luta” entre “descansar e controlar a ansiedade”, sabendo que não podia “desligar totalmente”, para não deixar de “ter a atitude onde estava”. Procurou deitar-se um bocado, não chegou a adormecer, mas deu “para descansar”.
Após um “bom aquecimento”, conseguiu “ativar bem”. O feitiço estava de volta.
No encontro pelo bronze, Patrícia sabia “a estratégia a cumprir”. Evitar o chão era um dos requisitos fundamentais. Agressiva e ofensiva, ganhou vantagem com um waza-ari, conseguido quando ainda faltavam quase três minutos de combate.
Aí, entrou um raro momento de dúvida. “Um misto de emoções”, entre “segurar a vantagem ou tentar uma nova vantagem”. Na dúvida, seguiu a receita do dia, de uma jornada ofensiva, sem medos. “Tenho um estilo de judo ofensivo e, para mim, a melhor defesa é o ataque.”
Atacou. Teve recompensa: um ippon acabou com a contenda. O bronze, aquela medalha com um pedaço da Torre Eiffel, o monumento que olha para a arena onde foi o combate, é dela.
Atleta da Sociedade Filarmónica Gualdim Pai, em Tomar, tornou-se, em Tóquio, na primeira olímpica a envergar as cores de um emblema da sua cidade. Patrícia sabe que tem de treinar fora e aproveita essas oportunidades, mas gosta “muito” de onde mora. “Tenho muito amor à camisola, muito amor ao meu clube”, conta.
Em Tomar, as pessoas do clube juntaram-se para ver esta exibição olímpica “num grande ecrã”, relata Patrícia. “Estou num ambiente pequeno e acolhedor. Sinto-me em casa e isso, para o meu sucesso, é importante. Sinto-me na minha zona de conforto”, retrata a mais recente medalhada portuguesa.
Pouco a pouco, parece que o transe de Sampaio vai passando. Dá respostas mais longas, a face de guerreira numa missão especial trocada pelo sorriso, uma felicidade rasgadíssima. A cara não mente, os olhos transformam-se, já não disparam uma mirada capaz de matar, agora são uma porta de entrada para percebermos o orgulho de quem cumpriu “um sonho”.
Mas o sonho não acaba aqui, promete e deseja Patrícia. Antes de ir receber a medalha, depois de horas que lhe mudarão a vida — agora virão as entrevistas, os contratos melhores, a atenção mediática, o rótulo eterno de “medalhada olímpica —, a judoca exprime uma vontade: “Desejo que esta lista [de medalhados portugueses no judo] seja cada vez maior. Que esteja lá o meu nome mais vezes, e também o de mais colegas. Daqui a quatro anos há mais Jogos Olímpicos e quero que ganhar uma medalha não seja uma surpresa. Temos uma equipa boa, tenho a plena confiança que poderemos ter mais medalhas e tornar isto numa constante.”