O futebol, como desporto, é algo que passa ao lado a muita gente. Ouvem falar sobre os três grandes, dizem que, por base de pressão familiar, se inclinam mais para um do que para o outro, nunca sabem como andam as classificações, e irritam-se quando os jornais têm como capa e assunto principal algo relacionado com ele.

Mas, o futebol como paixão, como amor, como razão, é bem mais complexo. Descendo a escadaria das divisões, posiciono-nos na Liga 3 do futebol português. É aqui que o sangue se sente a fervilhar nas veias dos adeptos que exigem até a mais ínfima gota de suor dos jogadores da equipa. Nestes jogos, há uma energia diferente. As cidades preparam-se para os encontros com mais de uma semana de antecedência, e não é só com a venda de bilhetes.

O Sr. José do café, com a Macieira ao lado, lança o dado às duas em ponto no café da rua, e é assim que começa. Depressa se juntam os que defendem o treinador, a dizer que ele sabe o que está a fazer e que gere aquilo que tem da melhor forma. Mas eles sabem que, tal como o VAR num lance crítico de penalidade, já os “treinadores de bancada” estão prontos para proclamar a sua soberania, que o maior culpado dos maus resultados é sempre o treinador, e nunca os jogadores.

Esta preparação tem tanto de caos, como de poesia.

De vez em quando lá entra um cliente, que não sendo grande adepto de futebol, ri-se dos galhardetes invisíveis que pairam na sala, e obriga o Sr. José a acalmar os ânimos de quem já está de papel e caneta na mão a tratar do mercado de transferências. A discussão fica mais acesa. Os papéis vão rodando pela sala, e já ninguém sabe ao certo que ponto de vista está a defender, e, no final do dia, quando o sino toca as 19 horas, a certeza é só uma: O Varzim vai ganhar no sábado.

Durante a semana seguinte, o processo é sempre o mesmo, como uma repetição tão certa, como o discurso da homilia da missa de domingo.

Até que chega sábado.

Colocar por palavras aquilo que sente perto do velhinho à beira-mar, é uma tarefa quase tão árdua como a dos homens do leme.

Aos varzinistas chamam “Lobos do mar”. Uma expressão que translada desde o relvado, percorre toda a largura da bancada nascente e culmina no topo da bancada norte. O dia de jogo é o dia mais importante da semana. É o dia em que vão as gerações todas da família ao estádio: os avós, os pais, os netos, os tios, os primos, a prima afastada, o primo que não é de sangue, mas mora lá na rua, os tios que vieram emigrados.

As cadeiras estão lá, mas não existem. É junto ao relvado, junto às grades, que se concentram os apaixonados pelo Varzim. Os que berram a plenos pulmões quando há a falta não marcada, quando o passe é falhado, quando o árbitro corre o risco de ouvir um “vais ao mar” sentido.

Chegar cedo para estes lugares é imprescindível. Mas cada um cumprimenta-se como um velho amigo, como se de um encontro casual se tratasse. Antes do apito, ouvem-se risos, crianças, ouve-se o mar, ouve-se a música dos altifalantes tão velhinhos como o estádio, e aguarda-se, com a calmaria de quem tem, literalmente, a tarde toda destinada somente àquilo, pelo apito inicial.

Até que ele soa. E aí o ambiente, até então sereno como as ondas do mar que se vê por entre a bandeira içada e os camarotes, muda radicalmente para um, tão frenético como a conversa no café. Ao hino, prega-se quase como um louvor, de canto a plenos pulmões, lágrimas nos olhos e esperança no olhar. Aplausos. Início da partida.

Não há um minuto, nestes jogos, em que haja completo silêncio. A não ser quando o descontentamento é maior que a esperança. Há sempre os cânticos de apoio de quem se organiza na bancada norte, treinadores de bancada que andaram a preparar as técnicas durante a semana toda no café do Sr. José, entusiastas que acreditam que ameaçar lançar alguém ao mar é a forma mais eficaz de marcar um golo, e que em nada tem a ver com técnica futebolística, e os que desejam, arduamente, poder saltar para o relvado, pegar na bola, e marcar eles o golo, até com uma perna às costas.

90 minutos de puro caos. 90 minutos de puro amor. 90 minutos de puro clubismo.

O Varzim ganha, o jantar é em conjunto com direito à garrafa que estava guardada no armário.

O Varzim perde, o período de luto é curto, há que preparar a próxima jornada.

Ser do Varzim é ser lutador. É saber o quanto a vida custa, seja no que for. Inclusive no futebol. É viver intensamente, com os nervos à flor da pele, o coração acelerado a zumbir nos ouvidos, a expectativa do que virá a seguir, e a certeza de se irá ultrapassar, seja o que for.

Quem passa por este futebol, nunca mais é o mesmo, e nunca fica indiferente. Os de cá, já nascem com a veia futebolística, com o nome dos craques do clube na ponta da língua, com as cores tatuadas na alma.

Os forasteiros não veem mais do que o mar e a linha do horizonte, acham bonito um estádio perto da praia, mas não sentem o amor, a paixão.

Quem é de cá, sabe o que é lutar para conquistar, o que significa a perda.

São pessoas de garra e ambição, e, como não podia deixar de ser, levam esse sentimento para todo o lado, principalmente para o futebol.