A tradução do carisma para inglês
Nos seus auspícios no Chelsea, o inglês de José Mourinho tinha nada de macarrónico. Dono de muita quilometragem a servir de tradutor de Bobby Robson no Sporting, FC Porto e Barcelona durante os anos que antecederam a sua erupção enquanto treinador, o português sabia as areias que pisava nos momentos em que lhe tocava falar em público em Inglaterra. “Como dizemos em Portugal”, soltou, na sua primeira época na Premier League e após um enfadonho 0-0 contra o Tottenham, “eles trouxeram o autocarro e deixaram-no à frente da baliza”. Senhor de carisma contagiante, hábil inventor de tiradas inspiradas no seu idioma nativo, Mourinho cunhou a expressão “park the bus” já depois de se batizar como “the special one” no inglês adotivo com o qual emanaria todo o charme comunicacional que lhe é conhecido.
Por mais inigualável que seja José Mourinho na personalidade, o seu exemplo a transpor para outra língua os costumes contagiantes da sua forma de comunicar em público podem servir de referente a um homem que em 2018, ainda a luzir um cabelo rapado, trinta e poucos anos, vindo algures entre o Casa Pia e o SC Braga, prestou-lhe uma visita a Manchester, curioso por assistir aos seus treinos no United quando o técnico ainda por lá andava. De maneiras distintas, dono aura vinda de lugares não comparáveis, se Rúben Amorim está a ponderar aceitar um convite para treinar os red devils não será apenas devido à sua benfeitoria de coisas no campo.
O técnico foi bem-sucedido no Sporting, em parte, pela sua arte em comunicar sem artifícios: cândido a falar sobre qualquer assunto em conferências de imprensa, sem pudores a abordar temas, Amorim nutriu simpatia em quem o ouvia por ser transparente nas suas explicações, ou aparentar sê-lo. Em quatro anos e meio, raro foi vê-lo a fugir a perguntas ou a abster-se de explicar opções técnicas, táticas ou de substituições nas flash interviews após os jogos. Tal desempoeirada natureza não se perderá na tradução, se Rúben é assim então pode bem continuar a ser.
Ao contrário de Mourinho, mestre a aplicar analogias aos seus golpes comunicacionais, o carisma de Amorim, mais linear e direto, não dependerá tanto do vocabulário inglês. Pense-se nas suas tiradas icónicas no Sporting: o “e se corre bem?” dito na sua apresentação, o “onde vai um, vão todos” realçado após um jogo que esteve por arames, ou o “vamos lá despachar isto que tenho amanhã um avião para apanhar” com que ousou brincar depois de arriscar cair nas más graças dos adeptos, pouco têm a ver com o domínio do idioma. O inglês de Rúben, ao contrário do elogio gentilmente prestado (“perfect english”) por um jornalista da Sky Sports, na terça-feira, é “rudimentar”, por confissão do próprio treinador. Também era, de certa forma, o de Jürgen Klopp quando aterrou no Liverpool e mais ainda o detido por Unai Emery, com o seu “good ebening” assim que pousou no Arsenal.
A manter-se a ser como é, o português tenderá a colecionar boas-graças.
O ruído e o falatório à volta do United
Ao contrário de Portugal, onde grande parte dos programas de televisão acerca de futebol junta comentadores por afinidade aos clubes, sem necessariamente terem jogado profissionalmente, em Inglaterra é comum, regra quase, falarem a diário antigas lendas de cada equipa. Seja na BBC, na Sky Sports ou na TNT Sports, a nuvem opinativa e televisiva tem uma densidade maior. Resumindo: há bastante mais gente a falar, falam constantemente sobre a vida de cada clube e, por serem quem foram, o que dizem inunda o espaço mediático.
O caso do Manchester United é peculiar. Vencedor da 14 das 20 primeiras edições da Premier League, criada em 1993 para ser a centrifugadora de milhões que é hoje e o maior íman de dinheiro em campeonatos nacionais de futebol neste mundo, os red devils tomaram-na de assalto para serem o bicho-papão da bola inglesa com Alex Ferguson. E a maioria desses títulos vieram dos pés, do esforço e das artimanhas de praticamente os mesmos jogadores, que prolongaram as suas carreiras no clube. Dessa fornada, muitas caras reformadas têm hoje assento residente em vários canais.
Haja ventos que soprem, em campo, na popa do United, ou seja a navegação do clube encoberta por tempestades várias como tem sido quase sempre desde 2013, ano da reforma de Sir Alex, as vozes das suas lendas usufruem tempo de antena garantido. Pelo menos Gary Neville, Roy Keane, Rio Ferdinand ou Paul Scholes têm lugar cativo na televisão, em podcasts ou espaços de opinião nos jornais. São constantemente questionados acerca de tudo o que respire Manchester United e o que opinam, muitas vezes, é metamorfoseado em perguntas para o treinador nas conferências de imprensa. Ruidoso é o ecossistema que rodeia o clube, cheio de dizeres vindos de fora que poluem os momentos de contacto do treinador com os jornalistas.
Interações que não se cingiram ao que Rúben Amorim se habituou em Portugal, fiel ao seu nariz torcido para com entrevistas. Em quatro anos e meio, à exceção das duas Taças da Liga que conquistou com o Sporting e após as quais conversou com a Sport TV, operadora que transmitiu a prova, no estúdio montado no estádio, nunca o treinador aceitou estar um-para-um com jornalistas durante o seu pecúlio nos leões. Em Inglaterra não será assim, por certo, devido aos compromissos comerciais que os clubes da Premier League estão obrigados a honrar com os detentores dos direitos televisivos, nem que passe por ser uma entrevista no relvado, a segurar o microfone e à conversa com comentadores e um jornalista, como é hábito ser visto por lá.
Um plantel não feito à sua medida
Ir espreitar os jogadores do Manchester United, ceder à futilidade das tarefas superficiais e escolher uma suposta equipa titular, assente no estático 3-4-3 como referência do que Rúben Amorim usou, quase que nem dogma, no Sporting, não custa muitos neurónios. Podia ser mais ou menos assim: André Onana na baliza; Matthijs de Ligt, Leny Yoro e Lisandro Martínez como os três defesas; Manuel Ugarte e Bruno Fernandes no meio-campo; as alas ficavam para Noussair Mazraoui à direita e Diogo Dalot à esquerda; na frente, Alejandro Garnacho e Antony fariam companhia ao avançado Rasmus Højlund. À vista desarmada, não parece nada mal.
Nesse exercício desmiolado, imprudente e apressado, o mundo seria igualmente pululado por unicórnios e génios da lâmpada, porque tal seria ignorar as características dos futebolistas. E descurar o que não sabemos. Irá Rúben Amorim manter a sua fidelidade a uma estrutura com três centrais? Estaria disposto a adaptar o sistema aos jogadores que tem? Com que bloco trabalharia a equipa para defender? E onde jogaria exatamente Bruno Fernandes caso não quisesse alterar a sua estrutura predileta? Olhando para os nomes no plantel do United, nenhuma destas questões são de resposta fácil.
É verdade que há, em Lisandro Martínez, um central canhoto para garantir a variedade na saída de bola, capítulo no qual o campeão do mundo com a Argentina é bastante capaz. Yoro é outro central de aptidões físicas ímpares, mas ainda um adolescente. De Ligt vê a sua própria versão do Ajax, de há uns anos, como um eco distante na memória de quem hoje é um defesa permeável ao erro. Nos homens para a esquerda, Tyrell Malacia não joga desde 2022/23 e Luke Shaw tem sido um poço de mazelas. Na figura de Ugarte há um ponto em comum, outrora um residente nuclear no Sporting de Amorim, mas, desde então, o modelo do treinador evoluiu para médios donos de competências a construir jogo que o uruguaio não têm. Bruno seria para trabalhar como médio, competindo com Christian Eriksen e a adolescência de Kobe Maino enquanto meiocampista que oriente as jogadas da equipa? Ou para uma mutação a fingir que é Pote?
Na frente, sem dispor de um futebolista à moda híbrida como Pedro Gonçalves, médio felizardo por ter um sentido de baliza invulgar, tu-cá-tu-lá com o momento de finalizar as jogadas, o United é uma miscelânea de perfis contraditórios. Em Højlund há um avançado pujante na condução de bola, ávido de ataques rápidos e campo aberto para atacar, mas Zirkzee é todo ele dotes para sair da área, servir de apoio, participar nas jogadas e associar-se com toques curtos. Se Garnacho é o desequilibrador mais nato e prático, nunca esquecendo onde deve terminar as suas ações, o brasileiro Antony estagnou na sua amálgama de fintas estéreis, perdidas nelas próprias. E Marcus Rashford, uma das referências do clube, parece uma figura desgarrada da equipa em tempos recentes.
Na melhor das hipóteses, Rúben Amorim teria de esperar até à janela de transferências de janeiro para pegar no carro das compras e levá-lo a passear. Isto caso Jim Ratcliffe, dono da INEOS que entrou com os seus milhões, em fevereiro, no Manchester United para ser o acionista minoritário (25%, mas com a gestão desportiva), conceda ao português no Natal as veleidades que permitiu a Erik Ten Hag no verão: comprar os futebolistas que lhe caiam mais no goto. Assim chegaram, há poucos meses, o neerlandês Matthijs de Ligt e o marroquino Noussair Mazraoui, ambos velhos conhecidos do predecessor de Amorim dos tempos do Ajax - como o eram Antony e André Onana. Se dispuser do mesmo beneplácito (o clube gastou quase €215 milhões no último mercado de transferências), Amorim terá então liberdade para limar o plantel à sua maneira.
Mas, até lá, haverá mais de uma dezena de jogos.
Há resistência dos pesos-pesados à mudança?
Cada clube é rodeado por um contexto, esses moldes são passados à equipa e os jogadores, apesar de muito se pensar o contrário, têm a cabeça permeável às circunstâncias que existem fora do campo. Nos últimos anos, a rebaldaria decisória no Manchester United foi evidente. Entre a traumática reforma de Alex Ferguson, a passagem de testemunho dos manos Glazer, antigos donos do clube ávidos a deixaram o faroeste na estrutura dirigente navegar sem bússola, e a entrada de Jim Ratcliffe, os red devils experimentaram épocas sucessivas de desalento, sobretudo desde a viragem da década.
Desde a saída do estilo conflituoso e bélico José Mourinho, em 2018, é difícil destrinçar a linha de pensamento do United a escolher treinadores: sucedeu ao português Ole Gunnar Solskjær, o simpático tipo da casa, antigo goleador, rendido a um estilo de jogo direto, de contra-ataque, amável no trato e na imagem pública; correu-lhe mal e, depois, veio Ralf Rangnick, suposto diretor-desportivo tido como remendo para treinador, crânio da filosofia do gegenpressing que inspirou o futebol alemão, mas sem as armas para o replicar em Manchester; ele pouco durou até ser contratado Erik Ten Hag, outro apologista da pressão alta, em teoria amante do futebol de posse e mandão, que cedo percebeu não ter plantel para jogar em consonância e com o tempo fez perceber que nem a ir buscar jogadores ‘seus’, que já conhecia, montaria uma equipa estável e eficaz.
Houve alguns jogadores que viveram tudo isto, ou quase. Nestes seis anos, os tipos com mais tempo de casa conhecerem os referidos treinadores, mais os interinos - Michael Carrick e agora Ruud Van Nistelrooy.
A chave para Rúben Amorim nutrir simpatias e boas receções no plantel poderá estar em Marcus Rashford, Luke Shaw e Harry Maguire, internacionais ingleses que viveram as trocas e baldrocas, além de Bruno Fernandes, o português e capitão da equipa que em tempos elogiou publicamente o treinador, que aos olhos dos futebolistas, antes de o conhecerem, pode bem ser visto como apenas mais um a vir tentar a sua sorte num movediço clube, onde as areias são instáveis. E ainda há Casemiro, um peso-pesado não necessariamente em historial no clube, mas atolado de história no futebol, com cinco Ligas dos Campeões ganhas com o Real Madrid.
É possível que tanto bom jogador tenha adquirido carapaça, uma certa imunidade a deixar-se encantar por novos treinadores, novos ciclos e a necessária abertura a deixarem-se levar por novas esperanças fruto das consequências da roda-vida que tem sido o Manchester United. O alcance do encanto de Rúben Amorim e da equipa técnica que irá com ele também será testado nestes recantos, na sua capacidade de cativar hostes e seduzir vontades à sua causa.