Gooooooooooolo! O Papa Francisco dizia não existir lugar no mundo onde a sílaba tónica da palavra fosse pronunciada com mais demora do que na Argentina. Tal como noutros assuntos em que se dizia que o Pontífice era gente como a gente, no futebol, a festejar o momento em que a bola se encontra com a rede num ponto de contacto que os fiéis das bancadas dizem também envolver taumaturgia, Jorge Bergoglio tinha o seu lugar entre os mundanos.

Ainda Diego Maradona estava “no colo de Deus” e nas raízes mais profundas da árvore genealógica do Papa Francisco existiu o primeiro El pibe. Chamava-se Omar Sívori e também chegou a jogar no Nápoles. O “sangue dos campeões” que corria num parente afastado não contagiou nenhum outro elemento da família.

Francisco era um “pata dura”, assim descreveu a parca habilidade na autobiografia “Esperança”. Em criança, jogava pelas ruas de Buenos Aires, porque o futebol “torna as pessoas felizes” e é um lugar para “exprimir a liberdade” e “competir de maneira divertida”. “Pode-se perseguir um sonho sem ter de ser forçosamente campeão. Tornanos felizes mesmo que sejamos um pé duro.”

Quando as incumbências religiosas ainda não eram assunto que o impedisse de comer pizza e caracóis com molho picante, deslocava-se ao Viejo Gasómetro para ver o San Lorenzo, clube fundado pelo padre Lorenzo Massa. Era lá que o pai jogava basquetebol. Quando Jorge nasceu, em 1936, o progenitor ter-se-á interrogado se era demasiado cedo para o levar ao estádio. Anos mais tarde, tornou-se rotina. “Era um futebol romântico, de famílias, as piores palavras que podíamos ouvir nas bancadas eram vendido ou desgraçado”, descreveu no livro.

Quando o século XXI estava no hall de entrada, a caminho de se instalar, o San Lorenzo contratou o treinador Alfio Basile. Ríspido no trato, o técnico não ficou muito agradado ao ver um estranho invadir o balneário quando os jogadores acabavam de se preparar e perguntou quem era o indivíduo. O presidente explicou que aquele era o padre que costumava benzer os jogadores antes de subirem ao relvado. Mais confiante na sua própria persuasão para convencer Deus a dar um bom resultado àquela equipa, Alfio Basile mandou expulsar a figura eclesiástica que o visitara sem pedido. “Eu fui contratado justamente porque o San Lorenzo não ganha a ninguém. Pode mandar embora esse azarado.”

A receber a equipa do San Lorenzo após a conquista da Libertadores, em 2014
A receber a equipa do San Lorenzo após a conquista da Libertadores, em 2014 Giulio Origlia

Jorge Bergoglio tornou-se no primeiro papa latino-americano em 2013 e, na época seguinte, o San Lorenzo ganhou a Libertadores (com ou sem ajuda divina, fica à consideração). Vindo de uma região de paixões exacerbadas, nas aventuras pelo comentário desportivo tratou de fazer a sua parte para apelar ao desaparecimento dos conflitos. Viessem de outro argentino tamanhos elogios ao brasileiro Pelé e quem os proferisse seria chamado de louco.

“Messi ou Maradona?” basicamente foi esta a pergunta do jornalista da RAI que teve a seguinte resposta: “Diria um terceiro: Pelé. São os três que acompanhei. O Maradona, como jogador, foi um grande. Como homem, faliu. Coitado, escorregou com a corte que o louvava e não o ajudava. Ele veio aqui encontrar-se comigo no primeiro ano do pontificado. Depois, coitado, teve aquele fim. [...] O Messi é corretíssimo. É um cavalheiro. Para mim, destes três, o grande cavalheiro é o Pelé, um homem de coração. Encontrei-me com o Pelé num avião e falámos. É um homem de uma humanidade tão grande.”

Em setembro de 2024, Francisco recebeu em Roma o presidente do San Lorenzo, Marcelo Moretti. Foi-lhe transmitida a ideia de que o novo estádio do clube, projetado para nascer no mesmo local onde o Papa tinha o hábito de assistir aos jogos, fosse batizado com o seu nome. A vontade do Santo Padre contradizia a intenção da equipa argentina. Ainda assim, acabou por aceitar, entre “histórias de infância”, “recordações” e “anedotas”, revelou o comunicado do San Lorenzo.

Talvez, nas condições em que o Papa Francisco o viveu, o futebol não seja o ópio do povo.