O passado, o presente e o futuro do futebol inglês, e consequentemente europeu, vão estar em discussão a partir desta segunda-feira, 16 de setembro. Num julgamento que se prevê durar até ao início de 2025, a história dominante dos últimos 15 anos da Premier League será quase sujeita a uma revisão, com consequências que poderão ser brutais, alterando totalmente o panorama futebolístico internacional.
Numa localização que, para já, é desconhecida, arranca o “julgamento desportivo do século”, como está a ser classificado pela imprensa britânica. Ao longo das próximas semanas, o caso que opõe a Premier League ao Manchester City será decidido, terminando com muitos anos de debate e especulação.
De um lado, a liga inglesa, a mais mediática e endinheirada do futebol global, que acusa o Manchester City de 115 violações das normas financeiras da competição. Do outro, o mais triunfador emblema inglês dos últimos 15 anos, período em que foi campeão oito vezes, quatro delas consecutivas, um tetra inédito no football.
Entre ambos, para decidir, estará uma comissão disciplinar independente, que ouvirá os argumentos de ambas as partes sobre as 115 violações, compreendidas ao longo de 14 temporadas.
Pep Guardiola já se manifestou “feliz” por o caso se estar a aproximar do fim, esperando que “comece rapidamente e termine rapidamente”. Richard Masters, CEO da Premier League, disse, antes do começo desta época, que “é o momento certo” para que o mais impactante caso da era Premier League, iniciada em 1992/93, termine.
Mas o que está em causa? De que é acusado o Manchester City? Qual a reação do clube onde atuam Rúben Dias, Bernardo Silva e Matheus Nunes a estas alegações? O que pode acontecer?
Anos de dúvida e acusações
Em 2008, o dinheiro de Abu Dhabi revolucionou o Manchester City. O clube, que em 1999 estava no terceiro escalão e em 2002 no segundo, tornou-se, rapidamente, uma das potências do futebol inglês. Em 2011/12 foi campeão inglês, feito que já não lograva desde 1967/68 e que repetiu em 2013/14.
No entanto, as suspeitas sobre irregularidades feitas pelos sky blues vieram juntamente com a glória. Cumprem-se agora 10 anos da primeira vez que a UEFA multou o City por quebrar as normas financeiras da entidade, uma nuvem que nunca desapareceu do Etihad e que se adensou em 2018, quando uma primeira investigação formal da Premier League foi aberta.
Em 2020, pouco antes da paragem das competições devido à pandemia da Covid-19, a UEFA chegou mesmo a suspender o emblema de Manchester das competições europeias, acusando-o de “grave incumprimento” com a legislação da entidade máxima do futebol continental. O Tribunal Arbitral do Desporto europeu viria a dar razão ao recurso dos cityzens, mas as dúvidas adensaram-se, chegando a um ponto máximo com a acusação destas 115 violações financeiras que serão, agora, julgadas. Mas que irregularidades são estas?
A resposta está no dinheiro. Ou, mais concretamente, na forma como o Manchester City inflacionou os seus ganhos e diminuiu os seus gastos, numa engenharia financeira para contornar normas da UEFA e da Premier League.
Em 2018, a “Der Spiegel” publicou documentos que, alegadamente, comprovavam que o City contornara as regras de fair play financeiro da UEFA, criadas em 2011, e as normas de lucro e sustentabilidade, da Premier League, inauguradas em 2012. O jornal alemão disse que a fonte desses documentos fora um denunciante chamado “John”, que era o pseudónimo através do qual o português Rui Pinto criou o Football Leaks.
Segundo a informação publicada, e entretanto aprofundada por outros órgãos de comunicação social, como o “Guardian”, o Manchester City usou um esquema para aumentar as receitas do clube: inflacionar as receitas de patrocínios vindos da Etihad, empresa de aviação de Abu Dhabi, e da Etisalat, empresa de telecomunicação também estatal, colocando nas contas do City valores mais elevados aos que, na verdade, eram pagos pelas empresas.
Esta manobra serviria para encobrir o dinheiro que era injectado pelos donos do clube, a Abu Dhabi United Group, detida pelo Sheikh Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dhabi e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos.
Se haveria, alegadamente, manobras para aumentar o que o clube encaixava, também as haveria para reduzir a receita. Segundo outros documentos que foram sendo publicados, o salário de Roberto Mancini, técnico do City que venceu a Premier League em 2011/12, era, em parte, pago através de um clube em Abu Dhabi, onde o italiano exerceria como “consultor”. A informação publicada pela “Der Spiegel” dá a entender que esse cargo de Mancini era apenas uma fachada, permitindo reduzir o impacto do salário do atual selecionador da Arábia Saudita nas contas dos cityzens.
As acusações englobam, também, esquemas semelhantes envolvendo futebolistas. Por exemplo, Yaya Touré terá recebido pagamentos de cerca de €8,7 milhões diretamente do Abu Dhabi United Group.
Assim se dividem as 115 alegações de violações de regras financeiras:
54 violações por não ter dado informação financeira correta entre 2009/10 e 2017/18;
14 violações por não ter dado informações correta quanto a pagamentos a jogadores e treinadores entre 2009/10 e 2017/18;
5 violações por não cumprir com as regras de fair play financeiro da UEFA entre 2013/14 e 2017/18;
7 violações por não cumprir as normas de lucro e sustentabilidade da Premier entre 2015/16 e 2017/18;
35 violações por não cooperar com as investigações da Premier League entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2023.
O Manchester City sempre negou veementemente todas estas alegações. O clube tem-se defendido considerando este caso uma “forma de manchar a imagem” do emblema, argumentando, ainda, que muita da documentação foi obtida ilegalmente.
Tudo isto será, novamente, escrutinado durante as próximas semanas. Soará quase a uma revisão a toda a história recente do futebol inglês, que viu o Manchester City ser tetracampeão (feito inédito) em maio, que o viu ganhar um histórico treble em 2023, que o viu ganhar ganhar oito títulos de campeão nos últimos 12 anos. Nos 136 anos de história do campeonato inglês, só quatro clubes ganharam o título mais vezes do que o City o fez na última dúzia de voltas ao sol.
O que poderá acontecer? Tudo e nada.
Não há precedentes, no futebol internacional, de um caso que, potencialmente, possa ser tão impactante como este, que possa abalar tanto o que foi, é e será o rumo do jogo em todo o mundo. Recentemente, Everton e Nottingham Forest foram castigados por incumprimento de regras financeiras, sendo-lhes subtraídos pontos, mas ambos os casos eram bem menores — em abrangência temporal e número de alegadas violações — do que este do Manchester City.
Em teoria, a equipa de Guardiola poderia perder pontos, ser condenada a descer de divisão ou, até, ser expulsa da Premier League. Se o City fosse declarado culpado, clubes rivais poderiam pedir indemnizações, todo o edifício do futebol inglês enfrentaria consequências difíceis de imaginar.
Este julgamento está, também, a ser visto como um teste à Premier League. Numa era em que o dinheiro estrangeiro invadiu a competição, que tem sido criticada por não colocar um travão à entrada de interesses geopolíticos árabes na liga — como não o fez quando o dinheiro russo entrou em 2003, através de Roman Abramovich —, muitas vozes questionam a capacidade que a liga tem para, efetivamente, aplicar as normas que cria, sucumbindo ao peso das forças que dominam um universo que tem interesses que vão muito além dos puramente desportivos em jogo.
Neste sentido, a BBC sugere ainda que, caso o Manchester City seja condenado, até as relações entre o Reino Unido e os Emirados Árabes Unidos — cujo presidente é irmão do dono do City — poderiam sair prejudicadas. Os EAU são vistos como um aliado chave para os britânicos no Golfo.
Um dos mais poderosos clubes do mundo é acusado de fazer batota pela própria liga que domina. Um clube que não só domina a liga mais poderosa do mundo, mas que também está no centro de uma rede que conta com 13 emblemas distribuídos por cinco continentes. O “julgamento desportivo do século” pode marcar um antes e depois no futebol internacional.