Há atletas que entram no bate-boca da cultura popular pelos seus feitos desportivos. E outros há que se tornam mitos olímpicos precisamente pelo contrário. Quem não se recorda de Eric “A enguia” Moussambani, o nadador da Guiné Equatorial que foi uma das figuras de Sydney 2000 depois de nadar sozinho uma das eliminatórias dos 100 metros, com dificuldades inauditas para terminar a prova?

É possível que a comparação não seja totalmente ajustada, mas Paris 2024 teve a sua própria heroína irónica: Rachael Gunn, ou melhor, a B-girl Raygun. A australiana de 37 anos surpreendeu na competição de breaking, mas não por ter os melhores moves ou um grande poderio físico, mas pelos pouco ortodoxos movimentos que fizeram muito boa gente duvidar da sua competência e até seriedade - e que a tornaram popular ao nível de ser protagonista deste último Halloween.

Durante as três batalhas que disputou na fase de grupos do torneio olímpico, Raygun não conseguiu sequer um ponto por parte dos juízes que avaliaram a prova e as críticas dos compatriotas não demoraram a chegar, materializadas até em petições com dezenas de milhares de assinaturas que exigiam pedidos de desculpas por parte da atleta. O nível de escrutínio e de ridicularização foi tal que, três meses depois dos Jogos Olímpicos, a australiana anunciou que vai retirar-se da competição.

“Ainda faço breaking, mas não compito. E não vou competir mais. Não, não”, revelou durante uma entrevista à rádio 2DayFM, de Sydney. Raygun apontou que a ideia era “continuar a competir”, mas que tudo se tornou muito difícil à conta das críticas que recebeu, da reação dos compatriotas e da chacota de que foi alvo. “Penso no nível de escrutínio que haveria. As pessoas iam filmar, iam colocar online…”, continuou.

As críticas e teorias da conspiração

Na sequência da sua participação nos Jogos Olímpicos, muitos australianos questionaram os critérios de seleção do país para a prova, surgindo até várias teorias da conspiração envolvendo Raygun. Numa das petições, que chegou a ter mais de 50 mil assinaturas, era exigido que Rachael Gunn e Anna Mears, chefe de missão da Austrália em Paris 2024, pedissem desculpa por “conduta antiética” na escolha da atleta para representar o país.

Um dos icónicos saltos de canguru da B-girl Raygiun
Um dos icónicos saltos de canguru da B-girl Raygiun Ezra Shaw

De acordo com a mesma petição, Gunn e Mears teriam tentado “manipular e comprometer os esforços de verdadeiros atletas”, já que Raygun faria parte de um organismo responsável pelo breaking na Austrália e que o seu marido estaria no painel de avaliação da atleta que iria a Paris. Acusações e teorias que o Comité Olímpico da Austrália se apressou a desmentir, acusando os autores da petição de “bullying” e de provocarem “um ódio público sem qualquer base factual”. O comité negou que a atleta e seu marido tivessem qualquer cargo ou papel na escolha de atletas para os Jogos Olímpicos. Raygun garantiu também que tudo não passava de “alegações e desinformação”.

Várias atletas australianas do breaking sublinharam pouco depois dos Jogos que a seleção de Rachael Gunn era justa, mas deixaram críticas à organização da seletiva, que exigiu várias “tecnicalidades” que impediram algumas candidatas de estarem presentes.

O certo é que o peso das críticas se tornou insuportável para Raygun, que é também professora universitária em Sydney e tem um doutoramento em estudos culturais e de género no breaking. Se os saltinhos de canguru e os estranhos movimentos no chão fizeram muita gente rir, o processo tornou-se “verdadeiramente perturbador” para a atleta, que agora diz adeus à competição. “Não tenho qualquer controlo no que diz respeito à forma como as pessoas me veem”, lamentou, sublinhando que ainda é “impossível processar” as “totalmente loucas” teorias da conspiração que se formaram sobre si.

“Dançar é tão divertido e faz-nos sentir tão bem. Não acho que uma pessoa tenha de se sentir um lixo por causa da maneira como dança”, disse ainda a olímpica australiana que, por outro lado, diz também que recebeu muitas mensagens positivas que lhe trouxeram alento.

“Pessoas que me disseram que eu as inspirava, que eu as tinha feito tentar coisas que antes não conseguiam, por serem muito tímidas. Que eu lhes trouxe alegria e sorrisos”, contou na entrevista, onde garantiu que continuará a dançar, nem que seja de maneira recreativa.

“Ainda faço breaking. Mas na minha sala de estar com o meu companheiro”.