Não peçam a Sifan Hassan para medir esforços. Não esperem que ela se poupe, que seja conservadora, que não vá até aos limites dos limites. Não está na natureza desta mulher de 31 anos.

Nunca esteve na natureza de Hassan. Natural da Etiópia, chegou aos Países Baixos em 2008, com 15 anos, como refugiada. Aquela adolescente já gostava de correr no seu país natal e, passado uns tempos de adaptação, voltou a desafiar o corpo já no seu país adotivo.

A aversão à poupança de energias ficou patente desde o momento inicial. Na primeira sessão de treino que fez nos Países Baixos, correu, correu e correu. Não conseguia parar, não lhe estava no ADN parar. “Corri tanto tempo que fiquei com a perna em sangue”, recorda.

É esta natureza audaz que Sifan Hassan conserva. O talento para ser uma espécie de Da Vinci do atletismo, completa, tocando vários instrumentos.

Sifan Hassan, ouro nos 10.00 e nos 5.000 metros em Tóquio, bronze nos 1.500, quando foi prejudicada por uma queda. Sifan Hassan, ouro nos 1.500 e nos 10.000 metros dos Mundiais de 2019, tornando-se na primeira atleta — homem ou mulher — a conseguir essa dupla.

Nas múltiplas valências da neerlandesa, nas diversas ambições da especialista no meio-fundo e no fundo, Paris 2024 foi uma espécie de nova aventura, de desafio pintado de fresco. Nestes Jogos, ela propôs-se ganhar o ouro nos 5.000, nos 10.000 e na maratona, imitando o feito do lendário Emil Zátopek em Helsínquia 1952.


O cansaço depois da final dos 5.000 metros
O cansaço depois da final dos 5.000 metros Richard Heathcote/Getty

Esta epopeia em andamento não começou com um ouro. Com efeito, à primeira tentativa, Sifan já não poderá igualar o feito de Zátopek. Mas ainda pode melhorar o seu medalheiro pessoal de Tóquio.

Na final dos 5.000 metros, numa corrida frenética, decidida na volta final, Sifan Hassan cortou a meta em terceira, sorrindo, feliz por um primeiro pódio em Paris. À frente dela estava a dupla infernal do Quénia, com Beatrice Chebet em primeiro e Faith Kipyegon em segundo.

No entanto, os juízes consideram que Kipyegon, a 800 metros do final, esticou o braço em demasia, tocando em Gudaf Tsegay e desequilibrando a etíope. A penalização para a queniana foi a desqualificação, subindo Hassan para a prata e levando a italiana Nadia Battocletti a um incrível bronze.

Mas não era a decisão final. Umas duas horas depois, após um recurso interposto pela Etiópia, Kipyegon foi readmitida. Voltou tudo à fórmula inicial: Chebet ouro, Kipyegon prata, Hassan bronze.

Na légua, Hassan andou quase sempre em último do grupo. Só à entrada para as três voltas finais foi ganhando posições. Foi, no essencial, uma batalha entre o bloco de quenianas e o de etíopes. As primeiras, com Kipkemboi também em 5.º, foram claras vencedoras do embate, com a Etiópia a ter de contentar-se com o 6.º de Ejgayehu Taye e o 7.º de Medina Eisa.

A última volta da parelha das quenianas foi frenética. Ambas aceleraram a passada, deixando toda a gente para trás. Sifan talvez estivesse demasiado atrás quando esse aumentar de ritmo se deu. Nos últimos 200 metros, foi a mais rápida, reduzindo distância para as da frente, mas não chegou para as ultrapassar.

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Numa prova que deixou todas exaustas, a felicidade da neerlandesa ao terminar leva a crer que, mesmo não imitando Zátopek, há felicidade por este bronze frente às fortíssimas armadas africanas, que jogaram em equipa. Foi a sua quarta medalha olímpica, às quais se juntam outras seis em mundiais.

“Sou uma pessoa curiosa, que adora olhar para desafios. Quero descobrir o que é possível”, disse, antes dos Jogos, Sifan Hassan. Para ela, que ganhou a maratona de Londres na sua estreia na distância, em 2023, seguindo-se um triunfo na maratona de Chicago, o projeto Paris 2024 prossegue dentro de momentos.

Os 10.000 metros são a 9 de agosto, a maratona é, como de costume, no último dia dos Jogos, a 11 de agosto. Uma coisa temos garantida: ela correrá e correrá, correr até não ter mais forças para correr.

Texto atualizado às 23h17 com a indicação da devolução da prata e Kipyegon, ficando Hassan com o bronze