O designado “caso BES” transformou-se num monstro jurídico, envolve centenas pessoas, múltiplas entidades, várias geografias, sabíamos que dificilmente seria um processo célere. Mas o julgamento iniciar-se 10 anos depois da resolução do Banco coloca uma questão: seja qual for a decisão, vai a tempo de fazer justiça?
O Direito Penal ensina que a pena tem, essencialmente, dois propósitos: A retribuição, inspirada nas Teorias Absolutas, onde a culpa é a medida da pena, numa lógia de pura punição e a Prevenção e Reintegração, fundadas nas Teorias Relativas. Nesta última perspectiva justifica-se a pena pela intimidação da sociedade relativamente à violação da lei, efeito dissuasor, e por facultar ao prevaricador a possibilidade de se arrepender, corrigir e ressocializar.
Se nos focarmos no principal arguido, o Dr. Ricardo Salgado, dificilmente identificamos qualquer possibilidade de se cumprirem estes fins. Pode uma pessoa de 80 anos, com uma doença degenerativa que afecta severamente a capacidade cognitiva, cumprir uma pena que castigue por aquilo de que não se lembra?
Faz sentido qualquer perspectiva de reabilitar, ou ressocializar, uma pessoa com uma doença degenerativa, em grau 2 de severidade, que não se irá reverter e tenderá a agravar?
Do ponto de vista criminal é um absurdo jurídico. Uma verdadeira fraude à Lei, considerando-a nos seus propósitos. Assume especial gravidade a impossibilidade do arguido se defender em audiência, não tendo domínio da vontade e estando diminuído cognitivamente, o que disser não pode ser considerado. Sem contraditório fica prejudicada a validação da prova.
Do ponto de vista cível, poderíamos alegar que o julgamento em curso poderia contribuir para facilitar a indeminização dos lesados. A culpa apurada em processo penal faz presumir como provados, os mesmos factos, em processo civil, sendo ilidível pela outra parte, mas assumindo o ónus da prova.
Todavia, o tempo que separa o início do inquérito e o início da audiência e julgamento, 10 anos, permitiu a deterioração e dissipação de muitos dos activos que poderiam responder pelas responsabilidades.
A opção adoptada pelo Banco de Portugal em 2014, acompanhada pelo Governo, a Resolução do Banco, teve tanto de inovadora como de ineficaz. A divisão entre Banco Bom e Banco Mau serviu para desculpar muitos incumprimentos, para vender a preço de saldo, património que constituía um considerável acervo do Grupo Espírito Santo.
As áreas do turismo, dos seguros e da saúde são disso o melhor exemplo. Sectores críticos da economia onde o GES se apresentava com evidentes vantagens competitivas, foram desmantelados, vendidos a retalho, muito abaixo do valor de mercado.
No banco, que sucedeu ao BES, herdando activos e responsabilidades, também têm sido do conhecimento público operações que fazem questionar o racional das decisões e, sobretudo, a salvaguarda dos interesses do Banco.
Ainda recentemente, por se tratar de futebol e de um dos três grandes do futebol português, foram públicas operações em que o Banco vendeu activos com 70% de desconto, activos que se converteriam automaticamente em capital em menos de dois anos.
A operação de venda a desconto das Obrigações, curiosamente a premiar o incumprimento, é o exemplo visível de muitas outras operações semelhantes. O Clube/SAD está num dos seus melhores períodos, a SAD apresentou um resultado líquido de 12 milhões no último ano, o activo desportivo valorizou-se em mais de 300 milhões de euros nos último 6 anos, está com uma estrutura financeira sólida, por que razão o Novo Banco vendeu, com desconto de 70%, as obrigações?
Sabemos que este é um pequeno exemplo, tornado público por se tratar de futebol, mas muitos mais existirão, onde o Banco vendeu em saldo activos de grande valor. Bem sabemos que depois da venda do Banco à Lone Star, em 2017, a receita dos activos não reverteria para indemnizar os lesados, mas diz muito dos critérios que estiveram na divisão entre “Banco Bom” e “Banco Mau”.
O tempo que foi passando aproveitou a muitos, aproveitou mais aos devedores do que aos credores. Tudo em prejuízo da justiça, em penalização daqueles que verdadeiramente foram prejudicados pela Resolução do Banco.
Comentava-se, na gíria de café, que depois da resolução o banco se transformou num bar aberto. Tudo se fazia, tudo era permitido porque as culpas iriam parar sempre ao Dr. Salgado.
Cada ano que passou representou mais um ano de oportunidades para quem ficou no “Banco Bom” e menos um ano de esperança para quem ficou no “Banco Mau”.
A complexidade do processo não pode explicar 10 anos de intervalo entre o início do inquérito e o Julgamento.
É um prazo demasiado longo para se fazer justiça, para indemnizar quem foi lesado, para castigar quem prevaricou e, especialmente pesado, para quem foi envolvido sem culpa. Justiça fora de tempo não é justiça, permite que a praça pública prevaleça sobre os tribunais, julga todos sem prova, castiga de igual forma prevaricadores e inocentes.