Tó Trips está de volta na companhia dos Fake Latinos, banda real em que militam o baterista Alexandre Frazão, o contrabaixista António Quintino e a violoncelista Helena Espvall. Juntos, Trips e os Fake Latinos assinam “Dissidente”, álbum povoado por fantasmas, que parece existir entre o passado e o presente e em vários lugares: com a música aí apresentada, vai-se desta Lisboa que Tó Trips tanto ama a Havana, da Nova Iorque dos poetas beat à Los Angeles de Chet Baker.

Para solidificar a sua nova banda, o guitarrista prepara-se agora para se fazer à estrada: no próximo dia 29 de março, Tó Trips & Fake Latinos sobem ao palco do Cine-Teatro de Amarante; dois dias depois, a 31 de março, repetem a apresentação em Lisboa, no Teatro Maria Matos; e a 28 de Maio farão o mesmo na Casa da Música, no Porto.

Antes do anúncio de novas datas, o músico que agora se reconcilia com o universo dos Dead Combo, banda que manteve com o malogrado companheiro Pedro Gonçalves até à data do falecimento deste, em 2021, fala-nos dos fantasmas com que conversa e explica de onde vem a dissidência que lhe guia os passos em volta da música.

O novo álbum tem por título “Dissidente”. Isso significa, apesar do amplo reconhecimento de que é alvo, que se continua a ver como uma carta fora do baralho?
...Sim, continuo. Acho que nunca optei pelo caminho óbvio. A música sempre me ajudou a ser dissidente e a cruzar-me com outras pessoas dissidentes. Tanto dentro da comunidade de músicos, como na sociedade em geral. A música ajudou-me a conhecer pessoas de várias culturas, de vários géneros, de vários pensamentos. A música ajudou-me a ser um dissidente em relação às expectativas do sistema. E mesmo dentro da música procurei sempre um posicionamento diferente. Eu fui parar à música pelo lado da imagem; andava na António Arroio [escola de artes, em Lisboa] e sempre quis ser um tipo da imagem, queria ser artista plástico, pintor, mas as médias em Belas Artes eram muito altas... Acabei por enveredar pelo caminho da publicidade. Mas a música, para um miúdo como eu que era adolescente nos anos que se seguiram ao 25 de Abril, trouxe uma coisa cá em Portugal, país onde antes parecia não haver nada, que foi uma nova cultura: roupa nova, as pessoas passaram a vestir-se com roupas diferentes, a calçar botas diferentes, a escolherem outro tipo de cortes de cabelo, outra atitude. A new wave e o punk trouxeram essa diferença. Eu tinha 8 anos quando se deu o 25 de Abril, era um adolescente no arranque dos anos 80 e entrei na música na segunda metade dessa década. E foi a música que me permitiu fazer todas essas descobertas.

Começámos por falar do título “Dissidente”, falemos agora do nome da banda, Fake Latinos. Penso que a única pessoa não latina da banda será a Helena Espvall. O nome será, portanto, uma piscadela de olho aos Cubanos Postizos, banda de uma das suas maiores referências, o guitarrista Marc Ribot?
É verdade, o nome tem essa intenção. Mas também surgiu como comentário a estes tempos que vivemos, em que nada parece ser verdade, em que a mentira também parece ser válida. E depois também refere esta ideia de que nós, os portugueses, somos latinos, mas não somos assim tão efusivos que sejamos considerados latinos nalguns sítios. Lembro-me de, há uns anos, ter ido com Dead Combo tocar a um festival de música latina em Newcastle, um convite que surgiu por causa de uma amiga nossa, a jornalista Maria João Guardão. O marido dela estava ligado à organização de um festival de música latina e ela questionou-o como era possível eles nunca terem convidado artistas portugueses: “ah, mas os portugueses também são latinos?” [risos]. Nós somos realmente latinos, mas não somos tão efusivos quanto a imagem que em certos lugares se tem da latinidade. Pensa-se sempre numa ideia de festa e isso não encaixa bem com a nossa imagem.

Falta-nos o adorno de frutas exóticas na cabeça, como o que a Carmen Miranda exibia, é isso?
Exacto... Até para nós ela é essa figura um bocado exótica, apesar de ter nascido em Portugal.

“Lembro-me bem de detestar fado e jazz. Porque era um ignorante, claro está”

Estes Fake Latinos são então um novo projeto de banda, novo capítulo pós-Dead Combo depois do projeto intermédio Club Makumba?
Espero que sim, que venha a ganhar essa consistência de banda, [mas] para isso ainda falta a estrada. Já conheço o Alexandre Frazão e o António Quintino dos tempos dos Dead Combo e a Helena conheço-a desde os tempos dos Timespine, e de a ver tocar com Lantana. Depois fiz o álbum “Popular Jaguar” com a participação pontual da Helena e também do António e chegámos a fazer alguns concertos como um trio. Desta vez, pensei também em convidar o Alexandre e, numa abordagem diferente, gravar as minhas composições, logo de raiz, com uma banda. Gravei as bases com o António e com o Alexandre, e a Helena acrescentou o violoncelo mais tarde. Uma das ideias que lhes transmiti foi que eu procurava um lado um pouco mais jazzístico para a sonoridade do álbum. Este é um disco feito para tocar com banda, mas, lá está, agora a banda precisa de se “colar” na estrada.

As gravações decorreram no histórico Namouche. Gravaram ao vivo no estúdio?
Sim, tocámos os três ao vivo na sala, eu, o António e o Alexandre. A Helena ainda não estava familiarizada com o material e por isso gravou mais tarde, com o Hugo Valverde. A gravação foi rápida, eles são músicos fantásticos. São gente capaz de gravar ao primeiro take e normalmente quando é necessário repetir é por minha causa [risos].

Escutando o disco, percebe-se que há uma consistência no seu som pessoal. Já homenageou a Fender Jaguar no “Popular Jaguar”. Que guitarras usou desta vez?
Usei duas guitarras, a Epiphone e a DeArmond. E num dos temas usei uma guitarra da Carminho que estava lá no Namouche e que ela, gentilmente, me permitiu usar. Era uma guitarra antiga que ela tinha lá deixado, eu vi-a lá, experimentei-a, gostei do som e pedi ao Joaquim Monte, do Namouche, que falasse com a Carminho para saber se eu a poderia usar.

Curiosamente, fado e jazz, em tempos idos, eram géneros proibidos para qualquer rocker que se prezasse. Mas são dois universos de que hoje se sente muito próximo, certo?
Tem toda a razão. Lembro-me bem de detestar fado e jazz. Porque era um ignorante, claro está. Sim, acho que a palavra é mesmo essa, “ignorante”, porque qualquer músico deveria ser curioso com o alcance do seu instrumento, com as línguas que será capaz de “falar” e, ao mesmo tempo, ser igualmente curioso em relação a toda a música que se estende à sua volta, seja qual for o seu ponto de partida. A música boa chega de todo o lado. A minha relação com o fado nasceu porque eu andei com o Camané na tropa e uma vez ouvi-o cantar a capella no bar lá da nossa repartição e achei aquilo fabuloso. Aquela forma de estar e cantar disse-me logo alguma coisa, foi uma daquelas revelações que se sentem na pele. Fez-me pensar, “é pá, espera lá...”. Quando eu era miúdo, ouvia-se fado lá em casa (Amália, Marceneiro), alguma música de intervenção (com que eu só me reconciliei já no final dos anos 90) e até música brasileira (que eu também pensava que detestava). O que eu queria era o que eu conhecia do Rock Rendez-Vous e, um pouco mais tarde, do Johnny Guitar. Foi preciso amadurecer para reconhecer a validade desses géneros de que eu pensava que não gostava. Foi só no final dos anos 90 que baixei a guarda e comecei a ouvir outras coisas. Depois encontrei o Pedro [Gonçalves], que me começou a mostrar muita coisa, malta do jazz, mas muito fora da caixa. Foi esse o meu percurso e claro que hoje posso dizer que gosto de muita música brasileira, e de fado e jazz, claro. Não me fecho a nada, como acontecia quando era miúdo e era mais... extremista.

Apesar de todas as transformações, Lisboa e o Tejo continuam a ser grandes inspirações para si...
Sim, mas hoje posso dizer que a Lisboa que mais me inspira é uma Lisboa fantasma. A Lisboa que eu sinto como uma inspiração é a Lisboa habitada por fantasmas. Há certos espaços que vão desaparecendo e neles crescem esses fantasmas. Espaços pelos quais eu passei e passaram muitas pessoas da minha geração. Esses espaços desaparecem e com eles desaparecem também certas pessoas. A cidade encheu-se desses fantasmas porque houve ruas, esquinas, cervejarias, restaurantes, quiosques e bares, sítios onde eu me cruzava com gente, que ou desapareceram ou se transformaram radicalmente. Eu morava bem no centro e passava a vida entre a Praça das Flores, o Chiado e o Cais do Sodré. Hoje, quando calha passar por essa zona, lembro-me dessas pessoas que já lá não estão. E se me esqueço delas é porque os lugares que elas ocupavam desapareceram. O tempo tem um efeito devastador…

Há outros lugares neste disco, para lá de Lisboa: há, nos títulos das músicas, referências directas a Havana, Los Angeles, Nova Iorque. Refere-se o tango e por isso não é preciso muito para se imaginar Buenos Aires neste “mapa”. Sucede a mesma coisa com a morna e Cabo Verde... A sua imaginação viaja com toda esta música?
Sim, sem dúvida. A música também me permite fugir daqui. Permite-me largar tudo o que me rodeia e ir até outros lugares. A música é uma máquina de teletransporte, tanto no tempo como no espaço. Se eu tivesse vivido noutro tempo gostaria de ter sido um pirata, alguém que passasse a vida em constante viagem e sempre com grandes aventuras. Gosto de ir controlando o meu destino, mas também gosto que a vida me leve até lugares desconhecidos. Já me aconteceram coisas muito boas em sítios onde se calhar, noutras circunstâncias, talvez não tivesse querido ir. Por isso eu gosto quando a vida me leva, me faz enfrentar o desconhecido.

E esses lugares são destinos que pré-determina quando compõe – “quero fazer uma música que remeta quem a ouça para Cuba ou para Cabo Verde” – ou escreve “sem destino” e quando escuta o que compôs percebe que afinal há ali lugares concretos?
As coisas acontecem de ambas as maneiras. Tenho aqui no estúdio uma reprodução de um quadro do Paul Gauguin de que gosto bastante. Já me aconteceu olhar para o quadro, para aquela mulher ali pintada, e imaginar uma música para ali, sonorizar um quadro…

E de repente viaja até ao Taiti...
Exacto. Lembro-me, quando andava na António Arroio, de ter a felicidade de ver o Carlos Paredes e a Luísa Amaro a sonorizarem um quadro do Toulouse-Lautrec, “A Lavadeira”. Aquilo foi muito importante para mim porque nunca me tinha ocorrido que era possível criar uma espécie de banda sonora para um quadro. Achava natural que se sonorizassem imagens em movimento, filmes, mas um quadro? Na verdade, a música pode ser inspirada por um quadro, uma fotografia, um texto, imagens com que nos cruzamos na internet. Tenho esse hábito de ir guardando imagens inspiradoras que encontro na net. Por vezes dou por mim a olhar para elas em busca de referências que me inspirem.

Tó Trips & Fake Latinos
Tó Trips & Fake Latinos Expresso

Para lá das referências geográficas, há também referências temporais nos títulos das músicas: “Filme Mudo”, “À Beira Tejo com os Meus Amigos Fantasmas”, “Old Time Bunny”... O Tom Waits referiu várias vezes que achava ter nascido no tempo errado. É o seu caso?
[Risos] Pois... Por acaso, agora, até acho que nasci no tempo certo, mas de facto houve uma altura em que eu achava que adoraria ter nascido um pouco antes e ter sido um jovem adulto na Nova Iorque do início dos anos 80. Adorava ter testemunhado aquela época especial, de que hoje conhecemos bem a música. Mas é um facto que, aos 59 anos, me continuo a sentir um dissidente em relação à forma de estar atual na indústria da música: sempre houve entretenimento, é verdade, e também é verdade que hoje se faz muita música incrível, mas aquela coisa de “encher chouriços” parece dominar este tempo que se faz de likes e coisas passageiras que sabemos bem que não vão chegar a lado nenhum. Por isso, sim, às vezes sinto-me um pouco deslocado desta era.

E será por isso que conversa com fantasmas? Neste álbum surgem alguns: o Pedro Gonçalves, claro, mas também o Jack Kerouac, cuja voz até surge no disco. Aprendeu a falar com fantasmas?
Sempre tive esse lado um bocado negro. Nunca fui muito da cena gótica, mas tenho esse lado das memórias muito presente, na verdade. Devo admitir – e a minha mulher Raquel diz o mesmo – que este é o meu disco mais “à Dead Combo”. Ela tem razão, porque há “malhas” neste disco que podiam mesmo ser dos Dead Combo. Depois do Pedro se ir embora e dos Dead Combo terem acabado, fiz uma travessia do deserto, decidi que não queria tocar mais “à Tó Trips”, temia que as pessoas pensassem que me estava a aproveitar de alguma coisa, mas isso foi um problema meu, que eu mesmo tive que resolver.

O seu luto?
Sim. Fiz um luto a mim próprio, àquele tipo, o Tó Trips, que ficou conhecido por tocar daquela maneira. Tive que deixar o tempo passar, por isso é que fiz os Clube Makumba e outras coisas. Precisei de encontrar maneira de me voltar a sentir confortável a tocar assim. Nunca mais toquei uma música de Dead Combo e às vezes há pessoal que me pergunta: “mas porque não tocas algumas? As músicas também são tuas...” Não sei se esse tempo algum dia virá. Se vier, tudo bem; se não vier, tudo bem na mesma. Foi preciso então fazer essa travessia para ser capaz de assumir essa sonoridade outra vez.

Este álbum também acentua um lado que tem explorado intensamente em tempos recentes ao ter uma aura cinemática, como se cada música tivesse um filme dentro. Vê-se a explorar esse campo das bandas sonoras de forma mais intensa no futuro?
Sem dúvida. Estou a trabalhar numa banda sonora para a companhia Teatro da Terra, para uma peça da actriz e encenadora Maria João Luís, “O Que é Feito do Meu Corpo?”, que vai estrear em Maio. Tem coisas mais electrónicas, mais do que guitarra.

Esse lado da sua obra não está disponível. Não pensa lançar esses trabalhos?
Só foi lançada a banda sonora do “Surdina” do Rodrigo Areias, mas eu também fiz a banda sonora da série “Matilha” do Edgar Medina. Talvez um dia a lance. É como aquelas gravações que fazemos no iPhone... Tenho mais de 300 gravações, em que eu toco malhas de guitarra. Ontem passei algum tempo a ouvir essas gravações e há lá coisas fixes, algumas eu já nem sei tocar, e talvez um dia saiam cá para fora. Talvez quando eu mesmo me tornar um fantasma [risos].