Cachalotes, baleias-piloto, baleias azuis, orcas, golfinhos, roazes… são inúmeros os cetáceos que é possível observar ao largo das nove ilhas dos Açores. Por aqui, cruzam-se 28 das 80 espécies de cetáceos que existem no mundo, fazendo do arquipélago um dos maiores santuários de baleias do planeta, com espécies residentes e migratórias, comuns ou raras, a atravessarem constantemente as suas águas. Mas não só. Pelo arquipélago da Madeira, por toda a costa continental portuguesa e também pelo Estuário do Sado passam e vivem inúmeros cetáceos. O Estuário do Sado, por exemplo, alberga uma comunidade de roazes corvineiros única no país e uma das três únicas colónias residentes em estuários na Europa.
Por comunicarem por sons, estes animais são muito afetados pela atividade humana no mar, pois esta provoca ruídos subaquáticos que interferem com a comunicação sonora destas espécies e com a ecolocalização das que possuem também esta funcionalidade. Recorde-se que todos os cetáceos comunicam por som e que os que têm dentes - nomeadamente os golfinhos, orcas, cachalotes, entre outros - utilizam também o seu sistema interno de ecolocalização para se orientarem no mar.
É conhecido o impacto dos ruídos provocados pela atividade do homem nestes animais. «O ruído subaquático é uma das formas de poluição grave introduzidas no ambiente marinho pelos humanos, sobretudo nos últimos 60 anos, que em algumas regiões viram a intensidade do ruído permanente (ruído ambiente sem fontes específicas identificáveis) duplicar em todas as décadas», começa por nos explicar Manuel Eduardo dos Santos, biólogo, professor no ISPA – Instituto Universitário e investigador do MARE- Centro de Ciências do Mar e do Ambiente.
O mesmo confirma ao SAPO Maria Clara Amorim, investigadora do MARE-FCUL e especialista em ruído subaquático: «A atividade humana, desde a navegação (ruído de barcos e navios), exploração sísmica dos fundos do mar, sonar, construção etc. provoca muito ruído principalmente nas baixas frequências, às quais a maior parte das espécies marinhas são sensíveis. Estima-se que o ruído nos oceanos tenha aumentado cerca de 3.3 dB por década desde os anos 50, tendo, no entanto, estabilizado mais recentemente pelo menos nalgumas áreas. Este aumento de ruído deve-se sobretudo ao transporte marítimo».
Este ruído do transporte marítimo e das embarcações atua sobretudo nas frequências baixas (abaixo de 1000 Hz), o que coincide com as frequências a que os peixes e tartarugas ouvem melhor e às quais os mamíferos marinhos também são sensíveis, explica-nos Maria Clara Amorim. Assim, o aumento de ruído subaquático pode interferir nas principais funções da vida dos mamíferos marinhos, visto ter um efeito negativo na sensibilidade auditiva, mascarando sinais acústicos, provocando respostas comportamentais ou causando stress fisiológico. Tal interfere na sua atividade regular como a captura de alimento, reprodução, repouso e migração.
«Pode mascarar os sons de comunicação e de ecolocalização uma vez que as frequências do ruído de barco se sobrepõem, pelo menos parcialmente, às frequências destes sons. Deste modo pode haver uma redução na capacidade de comunicação entre indivíduos ou na capacidade de capturar presas. No entanto muitos estudos mostraram uma capacidade de adaptação em que os animais mudam as frequências dos seus sinais, aumentam a duração ou a taxa de emissão de sons, compensado pelo menos em parte o efeito de mascaramento do ruído. Para além deste efeito outro bastante importante é o de causar stress como causa aos humanos», explica-nos a especialista em ruído aquático.
Com a declaração de pandemia devido à COVID-19, este transporte marítimo continuou a funcionar mas ainda assim com alguma redução, segundo indicações do Fórum Economico Mundial. Neste período, o transporte marítimo registou quedas de cerca de 30% em algumas regiões. Já o confinamento e restrições impostas fizeram a atividade pesqueira cair 80% em algumas regiões, como na China e em países da África Ocidental, e as atividades turísticas e de lazer paralisaram praticamente em todo o globo, representando uma queda abrupta de ruído.
Menos atividade humana no mar, menos ruídos subaquáticos, mais e melhor ambiente, apesar de ser ainda muito cedo para o quantificar. «Quanto ao impacto do confinamento, sem dúvida que reduziu as fontes antropogénicas na vida marinha, incluindo nos cetáceos. Estas fontes abrangem a atividade de whalewatching, mas também de barcos de recreio, e ainda de cargueiros, que apesar de no geral terem mantido as suas atividades é possível que tenha sofrido alguma redução durante o confinamento. Deste modo, é sugestivo que esta redução das fontes antropogénicas cause um efeito 'positivo' na vida marinha, isto é, os animais, em particular os cetáceos, tiveram uma 'folga' da perturbação dos barcos como já não tinham há aproximadamente duas décadas», explica ao SAPO Filipe Alves, biólogo marinho do MARE/ARDITI.
Contudo, é ainda muito cedo para tirar conclusões, informa o especialista em ecologia marinha: «Não temos quaisquer dados que nos permitam suportar ou quantificar esta hipótese dado que ainda não tivemos oportunidade de retomar os trabalhos de campo. A nível global, alguns grupos de trabalho estão a tentar aproveitar esta janela de oportunidade para quantificar o impacto do confinamento, mas ainda sem resultados conhecidos».
Veja abaixo o vídeo do Whale Tales Project, um projeto do MARE/ARDITI
Auscultar o mar em tempos de pandemia
É o caso de um grupo de trabalho da Universidade de Dahlhousie, no Canadá. Com o mundo em confinamento, David Barclay, professor do Departamento de Oceanografia da Faculdade de Ciências desta universidade, e pesquisadores do seu laboratório aproveitaram a oportunidade para explorar a mudança ocorrida em termos de ruído subaquático devido à pandemia.
Através de uma rede de observatórios subaquáticos que caracterizam a paisagem sonora das águas costeiras da região, os investigadores conseguem analisar tudo, «desde a força das tempestades de inverno até a presença de baleias assassinas, quase em tempo real», explica o investigador no comunicado divulgado pela Universidade de Dahlhousie.
Assim, a equipa encontrou uma redução mensurável na quantidade de som de baixa frequência a 300 km da costa oeste da Ilha de Vancouver, perto de uma importante rota de transporte de contentores entre o Canadá e os EUA e a Ásia. Encontraram a mesma redução significativa no Estreito da Geórgia, entre a Ilha de Vancouver e a parte continental da província da Colúmbia Britânica, no maior terminal de exportação da América do Norte.
Entre janeiro e abril deste ano, uma estação de hidrofone localizada a oeste da ilha de Vancouver registou uma queda de 16% na potência sonora - ou 1,5 decibéis - em comparação com o mesmo período do ano passado. «É uma redução pequena, mas significativa, e pode sugerir quedas ainda maiores nos próximos meses», diz David Barclay.
No movimentado Estreito da Geórgia - o corpo de água entre a Ilha de Vancouver e o continente canadiano - Barclay analisou a mudança de barulho semana após semana, observando que não apenas o oceano estava a ficar mais calmo, como tal estava a acontecer a um ritmo mais rápido. Em abril, o volume do ruído na água causado pelos motores e sistemas de propulsão dos navios havia reduzido em quase metade, ou mais de 5 decibéis.
Não se sabe completamente qual o efeito que isso pode ter na vida marinha, mas um estudo de 2012 mostrou que as baleias francas do Atlântico Norte parecem menos stressadas quando os níveis de ruído no oceano são reduzidos. Tal verificou-se aquando dos ataques terroristas de 11 de setembro no EUA, quando a maioria dos navios ficou parada nos portos.
«O impacto do ruído ambiente nos animais é uma questão difícil de abordar, porque controlar o ruído do oceano é quase impossível», explica Maj Thomson, que trabalha com Barclay há quatro anos. «Observar as mudanças no ruído do oceano durante esse período único pode oferecer oportunidades para entender melhor o impacto que a atividade humana está a causar no oceano».
Paralelamente, um grupo de cientistas está a levar a cabo uma experiência internacional para analisarem o silêncio nos oceanos. O projeto International Ocean Quiet Experiment está a recolher ideias de cientistas de todo o mundo que estudam o ruído subaquático para quantificar o impacto do confinamento humano em determinados níveis de ruído nos oceanos pelo mundo.
A comunicação por som
O canal acústico utilizado por estes animais apresenta várias características vantajosas para a comunicação no meio aquático. «Os sinais acústicos podem ser transmitidos a distâncias grandes, independentemente da turbidez da água e da hora do dia. Podem apresentar elevados conteúdos informativos devido à variabilidade possível nos seus formatos, sequências e modulações, e alguns deles podem mesmo ser direcionais. Os cetáceos estão evidentemente especializados na utilização deste canal, embora não devamos menosprezar as importantes funções dos outros canais sensoriais e de comunicação. Os golfinhos, em particular, produzem ativamente sons com as funções de comunicação, exploração acústica do meio (ecolocação) e ainda provavelmente com a função de debilitação das presas», explica Manuel Eduardo dos Santos na publicação ‘Aspectos acústicos do comportamento dos golfinhos’.
Assim sendo, como em qualquer canal de comunicação, o ruído interfere na passagem da mensagem. Em termos de impacto do barulho das embarcações nos cetáceos, uma vez que comunicam por sons e se orientam por ecolocalização, Manuel Eduardo dos Santos, que estuda o comportamento e ecologia acústica de cetáceos, explica ao SAPO que «o ruído gerado pelos navios mercantes reduz o alcance dos sinais de comunicação tanto das baleias (mais sensíveis às baixas frequências) como dos golfinhos (mais sensíveis às altas frequências), podendo alterar os seus comportamentos e os locais por eles utilizados, e, portanto, afetar a sua ecologia alimentar e reprodutiva, o que pode ser significativo. Apesar disso estes animais têm mostrado alguma capacidade de habituação e adaptação. Outras fontes de ruído e de ondas de choque, como as explosões submarinas, a exploração petrolífera ou os sonares militares, podem ter efeitos ainda mais graves, chegando a causar a morte de grupos inteiros, embora não se comparem, em gravidade global, às capturas acidentais por artes de pesca».
Esta atividade humana tem acrescentado nas últimas décadas muito ruído ao mundo subaquático, apesar de ser difícil de quantificar a dimensão acrescida. «Enquanto que em algumas zonas esse impacto é mínimo (como em habitats pelágicos / águas offshore), noutras, como nalgumas zonas costeiras, é gigantesco, levando à degradação do habitat e perda da vida marinha. Certos animais tiveram e conseguiram adaptar-se ao ruído antropogénico. O que é difícil de quantificar é o impacto a longo-prazo, que pode influenciar por exemplo taxas de sobrevivência», explica Filipe Alves.
Porém, também é conhecida a interação destes animais com as embarcações, pelo que se deduz que aprenderam a conviver com elas, havendo, como já foi referido, alguma adaptação: «Na realidade vemos muitas vezes cetáceos, em especial os golfinhos, a aproximarem-se e acompanharem as embarcações (seja de whalewatching, de particulares, mas também de cargueiros que são altamente ruidosos), pelo que estes animais não deverão ser muito afetados pelo ruído das embarcações. O problema é a presença e exposição constante (diária) e a longo-prazo (décadas) dos cetáceos a embarcações em áreas particularmente importantes para o desenvolvimento das atividades vitais dos animais, como acontece com a colocação de turbinas para obtenção de energia eólica no mar, ou com atividade de whalewatching não regulada, salienta o biólogo marinho.
Tratar melhor a vida marinha
Mas o impacto negativo do homem nos recursos hídricos do planeta não se cinge ao ruído que afeta os animais marinhos. Segundo a Organização das Nações Unidas, desde a década de 1990, a poluição hídrica piorou em quase todos os rios e, consequentemente, nos mares. Estima-se que a deterioração da qualidade da água aumente ainda mais nas próximas décadas, e como tal também as ameaças à saúde humana, ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. Todos os anos, 100.000 animais marinhos são mortos devido ao plástico despejado no mar, um dos grandes flagelos ambientais da atualidade.
A pressão humana sobre os oceanos continua, assim, a aumentar. Segundo um estudo publicado na revista ‘Nature Comunnications’, quase 66% dos oceanos e 77% das jurisdições nacionais apresentam elevado impacto humano. «O impacto humano está a crescer muito e o efeito cumulativo é pouco conhecido. Pode ir desde poluição (acústica, química, acidificação -resultante do aumento de dióxido de carbono na atmosfera, lixo incluindo microplásticos, derrames de petróleo, etc.) à introdução de espécies invasoras e destruição de habitats, sobre exploração de pesca, por exemplo, etc.», resume ao SAPO Rita Sá, responsável do Programa de Oceanos e Pescas da Associação Natureza Portugal em associação com a WWF (ANP|WWF).
Os oceanos cobrem três quartos da superfície terrestre, contêm 97 por cento da água da Terra e representam 99 por cento do espaço vivo no planeta, em termos de volume. São os oceanos (a sua temperatura, a química, as correntes e a vida marinha) que mantêm os sistemas globais que tornam a Terra habitável para a humanidade. A água da chuva, a água potável, o tempo, o clima, as zonas costeiras, grande parte da nossa comida, e até mesmo o oxigénio que respiramos são todos fornecidos e regulados pelo mar. A sua sobrevivência é vital para a sobrevivência do homem.
E este confinamento vai servir para refletir e tratar melhor a vida marinha? «Esta é a pergunta para os 10 milhões! O problema é que o mundo gira principalmente em torno da economia e de interesses políticos, e por isso é mais difícil de aplicar as medidas que já estão mais do que definidas há várias décadas. Mas nem tudo é negativo, e existem muitos exemplos de boas práticas. Recomendo a leitura da edição da penúltima edição da revista NG que aborda bem este tema do lado negativo e positivo», recomenda o biólogo Filipe Alves.
Já Rita Sá deixa algumas ideias: «Estratégias futuras podem passar por criar zonas de silêncio. Por exemplo, desviando rotas de navios e barcos de zonas sensíveis, e minimizar o ruído causado por embarcações, como por exemplo construindo hélices que produzam menos ruido por cavitação. Já há um grande esforço nesse sentido».
«Lições do confinamento? Ainda não tenho opiniões firmes! Sobre a vida marinha, temos de continuar a estudá-la, a encontrar melhores maneiras de avaliar o impacto das nossas atividades agressivas, desrespeitosas e irresponsáveis, e maneiras de reduzir e mitigar os seus efeitos nocivos», finaliza Manuel Eduardo dos Santos.