Ricardo Vermelho é pescador profissional no rio Tejo há 30 anos. Sempre pescou barbo, boga, lampreia e todo o tipo de peixe nativo e migratório deste rio. Mas agora o peixe que lhe chega pelas redes não se compara com o que pescava no passado. E o principal culpado, diz, é o siluro. «Um dia destes apanhei um siluro que tinha uns 15 kg e tinha uma enguia, um lagostim e um barbo quase com 2 kg dentro da barriga. Eles comem tudo o que mexe. Até patos. Por isso, onde antes eu apanhava 10 kg de barbo agora apanho um ou dois, se apanhar», afirma o pescador.
Também chamado de peixe-gato europeu, o siluro (Silurus glanis) é um peixe voraz e um predador de topo que não encontra rival e facilmente domina o ambiente onde entra. É o terceiro maior peixe de rio do mundo e pode atingir 2,80 metros e pesar cerca de 120 Kg. Nativo da Europa Central e Oriental, o siluro foi introduzido na Península Ibérica na década de 1970, na barragem do Riba-Roja, no rio Ebro, em Espanha. Os especialistas acreditam que a partir daqui terá dispersado ou sido introduzido no Tejo por pescadores desportivos uma vez que é um troféu aliciante para esta comunidade. Ao Baixo Tejo terá chegado por volta de 2006.
Desde então tem vindo a reproduzir-se para números preocupantes. «Quando começamos a estudar a espécie em 2016, numa campanha de campo, apanhávamos aproximadamente 10 peixes durante uma semana. Atualmente, em três dias, apanhamos entre 20 e 30 siluros. Hoje em dia é comum os pescadores profissionais reportarem capturas de 30 a 50 siluros por dia. Em França, num rio mais frio e não tão produtivo como o Tejo, colegas da Universidade de Toulouse que trabalham com o siluro estimaram que em cada metro de rio existia um siluro adulto, com mais de um metro. Ora se transpusermos este valor para a barragem de Belver, por exemplo, que tem 10 quilómetros de extensão, é muito provável que tenhamos mais de 10 mil siluros só na barragem de Belver porque o rio Tejo é mais produtivo e quente, permitindo um maior crescimento populacional», explica Filipe Ribeiro, biólogo e investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente.
O investigador e a sua equipa marcaram e seguem atualmente 30 siluros na barragem de Belver, para saber em que épocas do ano e do dia estão mais ativos. «Verificámos que o siluro está mais ativo entre abril e outubro, é uma espécie que ocupa mais a zona superficial da barragem. Descobrimos, ainda, que existem alguns períodos do ano em que os siluros se agregam em determinados locais das barragens, que podem estar associados à sua reprodução mas também a comportamentos de refúgio de falta de oxigénio».
Contactado pelo SAPO, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) diz que a presença de siluros em Portugal tem vindo a ser monitorizada desde a década de 90 do século passado, o que levou a que, dada a capacidade de invasão da espécie, a mesma tenha sido classificada como espécie exótica invasora em 1999 (Dec.-Lei n.º 565/99, de 21 de dezembro). E reconhece que «espécies de peixes e macroinvertebrados nativos, e até outros vertebrados como anfíbios, mamíferos (pequenos roedores), e aves podem ser afetadas negativamente pelo siluro, dada a sua capacidade de predação e a sua longevidade de até 30 anos».
Impacto dos invasores
A presença de alguns peixes exóticos leva a alterações nos ecossistemas, acarretando custos ambientais e económicos para a sociedade. Para além da predação de espécies nativas, está cientificamente provado que a maior abundância de alguns peixes invasores, como o siluro ou a carpa, provoca perda da qualidade de água, implicando maiores custos no tratamento de água para abastecimento público. Os peixes exóticos podem ainda transportar doenças ou parasitas transmissíveis às espécies já existentes em Portugal.
Doutorado em Biologia da Conservação, Filipe Ribeiro trabalha com peixes dos rios de Portugal desde 1998. Participou no primeiro estudo realizado em Portugal sobre o comportamento alimentar e o potencial impacto deste peixe na biodiversidade local. Publicado em dezembro de 2019, este estudo confirma que o siluro é um predador onívoro oportunista de grande porte e elevado sentido predatório. Adapta a sua dieta ao espectro de presas que encontra no ambiente, tornando-se numa grande ameaça à biodiversidade local e ao modo de vida dos pescadores da região. «O maior de que tenho conhecimento que foi capturado cá foi na Aldeia das Caneiras, em Santarém. Tinha 2 metros e 60 Kg», conta-nos o biólogo. Em Espanha e França, onde a espécie é invasora há mais tempo, já foi vista a sair fora de água para caçar patos e pombos.
O perigo está literalmente à espreita. «O rio Tejo tem uma fauna única em Portugal, isto porque uma boa parte dos peixes nativos são endémicos de Portugal e Espanha, isto é, em todo o mundo só existem na Península Ibérica. E duas dessas espécies são endémicos do Tejo - só existem no Tejo e em mais lado nenhum do mundo - são elas a Lampreia-do Nabão e a Boga-de-boca-arqueada de Lisboa, esta última existe no troço principal. O rio Tejo tem ainda um conjunto de vários peixes migradores importantíssimos para nós, como a lampreia-marinha, a enguia-europeia, o sável, a fataça, todos eles são um recurso económico importantíssimo para as várias dezenas de pescadores que vivem nesta região. Também estes peixes migradores fazem parte da cultura do Ribatejo, dos pescadores Avieiros desta zona, fazem parte da identidade desta região. Ora o siluro é um predador de topo, é como ter um leão dentro de água, ninguém o preda e irá atingir enormes densidades alimentando-se destes peixes nativos», destaca Filipe Ribeiro.
O que o estudo acima citado confirma já os pescadores da região o perceberam nos anos mais recentes. Na zona de Mação, Ricardo Vermelho assinala que «de dia para dia, de ano para ano, o nosso peixe nativo está a acabar. Daqui a 4 ou 5 anos acaba mesmo. Os siluros comem tudo, não dão hipótese. Se ninguém fizer nada o nosso peixe nativo vai acabar mesmo, porque são milhares a comerem peixe todos os dias e ainda desovam muito, fazem muita criação».
Da mesma opinião é Arlindo Marques, 55 anos, pescador lúdico da freguesia da Ortiga: «Há dias apanhei um siluro com 25kg e 1,75, aqui na ribeira mesmo encostada à barragem de Belver. Há muitos, muitos, é uma coisa doida que anda aqui. Ninguém consegue parar isto. Eles são tantos que daqui a 4 ou 5 anos só eles é que vão dominar. É que já se veem muitos pequeninos e estes pequeninos vão crescer».
Ora, usando o exemplo da barragem de Belver, a estimativa de existência de 10 mil peixes adultos com um peso médio de 10 quilos perfaz 100 000 quilos de biomassa. Todos os dias estes peixes precisam de 2% desse valor para sobreviver. Assim, todos os dias, consomem duas toneladas de biomassa de presas… só nesta barragem.
Mais a sul o impacto não é tão visível, até porque o siluro prefere águas mais calmas. João Lobo é pescador profissional há 25 anos na zona da Aldeia do Porto da Palha, concelho da Azambuja. Por estas águas pesca sável, lampreia, bargo, enguia, fataça, etc.. O pescador nota diferença na pesca em relação há 25 anos, mas aponta o açude de Abrantes como o principal fator que está a causar impacte ambiental no rio Tejo, pelo menos na sua zona de intervenção, uma vez que este impede a livre circulação e desova do peixe. O siluro ainda não é, mas começa a aparecer como fator preocupante. «O Tejo aqui é muito forte, tem duas marés todos os dias muito grandes. Mas fora da zona de maré já há colegas meus que estão com muitas dificuldades porque eles arrasam tudo. E pode-se vir a complicar daqui a uns anos mesmo aqui no Tejo das marés. Penso que até aqui os siluros nos vão criar problemas. Eu também já apanho grandes, já capturei um com 28 kg que era mais alto do que eu. É um peixe de grande porte», conta o pescador.
Com esta realidade reportada no dia a dia e os dados de estudos científicos nas mãos, como se prevê ser a situação da população piscícola no Tejo daqui a poucos anos? «Prevejo que teremos principalmente os siluros de grandes dimensões, existirão também os migradores mais abundantes como a fataça (tainha) que irão servir de alimento aos siluros. Penso que a diversidade de peixes nativos e migradores será menor. Teremos menos peixes como o barbo, a boga, o escalo», alerta o biólogo do MARE.
Como controlar o siluro em águas portuguesas?
Dada a sua elevada taxa de crescimento, voracidade, longevidade, versatilidade e alta fertilidade, o siluro é uma ameaça para espécies de peixes autóctones e sustentabilidade das populações que vivem do rio. Atualmente, e confirmado, em Portugal só existe siluro no troço principal do rio Tejo e nas suas barragens: Fratel, Belver e Tejo Internacional. Existem, no entanto, já alguns registos no troço do rio Douro mas necessitam de confirmação, segundo nos revela o biólogo. O ICNF relata ainda casos recentes na albufeira do Sabor (Bragança) e na barragem da Aguieira (Penacova).
A grande questão é, com todas estas características e não tendo predadores, como se controla esta população invasora? «Seria importante que os pescadores desportivos não devolvessem o siluro quando o pescam. A grande maioria dos pescadores profissionais mata o siluro, porque sabem que o siluro preda as lampreias, as carpas, os sáveis. Seria importante que todos os pescadores desportivos cumprissem com a obrigatoriedade de não libertar os siluros de volta. Ou seja, que os retirassem dos rios e barragens. Mas creio que isso não é suficiente. Seria urgente implementar-se um programa de remoção do siluro e acompanhar a sua evolução ao longo de vários anos», destaca o investigador Filipe Ribeiro.
«De dia para dia, de ano para ano, o nosso peixe nativo está a acabar. Daqui a 4 ou 5 anos acaba mesmo. Os siluros comem tudo, não dão hipótese»
Questionado sobre o que está a ser feito para controlar os siluros em Portugal, o ICNF reconhece que «as espécies constantes da Lista Nacional de Espécies Invasoras com ocorrência verificada no território nacional, como é o caso do siluro, devem ser objeto de planos de ação nacionais ou locais com vista ao seu controlo, contenção ou erradicação, os quais podem também abarcar grupos de espécies com características semelhantes». Em termos de intervenção, indica que «quaisquer planos de ação nacionais deverão ser promovidos pelas entidades competentes em razão da matéria, em articulação com o ICNF, e aprovados por Resolução do Conselho de Ministros (os planos de ação locais deverão ser promovidos por qualquer entidade pública ou privada com competência ou interesse na matéria, e aprovados pelo ICNF)».
Porém, remete a realização de um plano de ação nacional para depois da finalização do projeto INVASAQUA, um consórcio de conhecimento ibérico que analisa a presença desta espécie no território: «A finalização e as conclusões do projeto INVASAQUA a decorrer neste momento e o envolvimento de várias outras entidades permitirão finalizar a elaboração de um plano de ação nacional para esta espécie, no mais breve espaço de tempo possível». Porém é de salientar que este projeto só termina em 2023, tempo que os pescadores dizem não ter. «Daqui a três anos o problema vai ser muito mais difícil de controlar», comenta o biólogo Filipe Ribeiro.
Vídeo: Marcação de Siluros na Barragem de Belver
Créditos: H. Henriques/Alamal River Club
De qualquer forma, atualmente, como nos indica o ICNF, a lei criminaliza a devolução de siluros à água. Assim que são apanhados, os siluros devem ser consumidos ou destruídos. «Tal como consta da legislação em vigor, estando o siluro incluído na lista de espécies exóticas invasoras, está interdita a devolução à natureza de espécimes que sejam capturados no exercício de uma atividade regulada por legislação especial, como a pesca [(alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 92/2019, de 10 de julho]. Desse modo, qualquer espécime capturado deverá ser objeto de consumo ou destruição, tendo em atenção que legalmente está interdita a detenção, cedência, compra, venda, oferta de venda e transporte de espécimes vivos».
A população pode também contribuir para gerar conhecimento sobre as espécies invasoras e assim ajudar ao seu combate. Sempre que vir ou capturar um siluro pode registar essa ocorrência na página do projeto FRISK , que analisa o percurso dos peixes exóticos em Portugal.