A nossa alimentação mudou nas últimas décadas. Nunca consumimos tanta proteína animal como agora e isso tem um custo em recursos que não são inesgotáveis. No que ao pescado diz respeito, em termos globais, cada pessoa consome cerca de 20 kg por ano, quase o dobro de há 50 anos. Mas os números aumentam substancialmente quando nos focamos na Europa e particularmente em Portugal, o país da União Europeia com maior consumo de peixe. Segundo a FAO, a Organização da Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, cada português consome cerca de 55 kg de peixe num ano. Somos o terceiro maior consumidor de peixe a nível mundial, apenas ultrapassados pela Islândia e pelo Japão. As espécies mais consumidas por cá são a sardinha, o carapau, o polvo, a pescada e o peixe-espada.
A produção e consumo responsáveis é uma das 17 Metas de Desenvolvimento Sustentável que a ONU traçou em 2015, para se atingir em 2030, e que foram acolhidas por 193 estados-membros das Nações Unidas. Porém, por enquanto, para satisfazer o apetite global, estamos a pescar mais pescado que aquele que os oceanos conseguem produzir. E assim chegámos ao momento em que 31% dos stocks globais de peixe estão sobre-explorados, sendo que no Mediterrâneo esta sobre-exploração de stocks atinge uns massivos 93%.
Traçado o mapa, percebemos que o consumo sustentável é um conceito que tem de entrar e encaixar-se no mercado. A sustentabilidade é, aliás, um tema que cada vez mais nos acompanha no dia a dia. E a ida às compras não é exceção. A escolha na hora da compra é o grande poder dos consumidores. Pelas suas escolhas se lê o mercado e as tendências que se impõem. Escolher produtos sustentáveis para ‘obrigar’ os agentes do mercado a seguirem essa via está na mão de todos os que se preocupam em consumir sem colocar as reservas naturais em risco. Mas para isso é preciso que o consumidor esteja informado, para fazer escolhas conscientes. É aqui que entra o projeto Fish Forward, que envolve 17 países, entre os quais Portugal, para promover o consumo sustentável de pescado na Europa, o maior mercado do mundo e o maior importador de produtos do mar.
«O projeto FishForward é um projeto que pretende informar e responsabilizar os consumidores na sua forma de consumir peixe e marisco. Ora os portugueses, como os europeus que mais consomem estes produtos, têm certamente uma responsabilidade acrescida em repensarem a forma como o estão a fazer, e devem ser informados dos impactos que esta atitude tem no ambiente e nas pessoas», começa por nos explicar Marta Barata, responsável de comunicação do projeto FishForward, desenvolvido pela Natureza-Portugal/WWF.
Um dos grandes problemas a combater é a sobrepesca. Tal como já foi dito, um terço dos stocks globais de peixe já estão sobre-explorados e no Mediterrâneo essa percentagem está já bem perto da rutura. Junta-se a estas cifras a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada, que, segundo esta organização ambientalista, já representa 30% da captura anual total do mundo. As artes de pesca utilizadas, quando não existe regulamentação, também ajudam agravar o problema, pois podem até causar danos irreversíveis no meio ambiente e destruir importantes habitats marinhos.
«Sem dúvida que a sobrepesca é uma das maiores ameaças neste momento. É essencial aprofundarmos todos o nosso conhecimento nesta matéria, em especial como consumidores, por termos um poder enorme nas mãos. Não podemos passar a vida a comer petinga e a culpar quem a vende. Enquanto consumidor, se eu não comprar vai deixar de haver à venda - eu tenho esse poder. A sardinha é um dos bons exemplos de espécie que ainda precisa de ser respeitada para que a sua população ibérica recupere em pleno. E precisamente por ser tão essencial para os portugueses é que devíamos estar a proteger este stock. Mas acho que mais importante do que uma ‘lista de espécies’ é preciso explicar às pessoas que é essencial sabermos um pouco mais sobre este assunto. Dependendo da área geográfica onde, por exemplo a sardinha, tenha sido pescada, pode fazer toda a diferença entre ser ou não de ‘fonte sustentável’. Os stocks não são os mesmos. Uma sardinha portuguesa pode vir de um stock ainda em recuperação, enquanto que uma sardinha grega pode vir de um excelente stock. É preciso informar as pessoas destas diferenças e, mais, ajudá-las na escolha», assinala Marta Barata.
Um guia para as melhores escolhas
Fazer boas opções está nas mãos de todos os consumidores. Porém, mesmo que alertados para o problema, muitos não sabem fazer as escolhas certas, simplesmente porque não têm informação para isso. Por esta altura estará a perguntar-se: mas, afinal, posso comer sardinha, carapau, dourada, salmão, bacalhau, cavala, ou não? Existe de facto uma lista negra do que não se deve consumir, que inclui o atum rabilho, enguias, lampreias, tubarões e raias protegidos; inclui também qualquer espécie marinha ou de água doce avaliada pela Lista Vermelha da IUCN como Criticamente em Perigo ou Em Perigo; qualquer espécie marinha ou de água doce listada no Apêndice 1 da CITES; e ainda espécies Em Perigo, Ameaçadas e Protegidas, conforme definido pela legislação nacional ou acordos internacionais.
Porém, uma ‘lista’ do que pode consumir não será assim tão linear, pois o consumo depende sobretudo do tamanho do peixe, da altura em que é capturado, da arte de pesca usada e do stock de onde provém. No caso de Portugal, para ajudar os consumidores a fazerem a escolha certa, a WWF usa um código de cores simples, que ajuda a fazer essa seleção e que foi criado mediante a avaliação de vários parâmetros. Percebemos, por exemplo, que o camarão de Moçambique é de evitar, porque é capturado por arrasto; já a cavala é uma ótima escolha em todos os sentidos. O bacalhau é uma boa opção se tiver certificação MSC, mas será de evitar se tiver sido capturado no Atlântico Nordeste com redes de emalhar ou por arrasto. A sardinha é de consumir se tiver certificação MSC, mas de evitar se tiver sido capturada por pesca de cerco ou por arrasto.
Os consumidores podem exigir essa informação para poderem optar se querem ou não consumir o produto à venda. É obrigatório por lei as embalagens (frescos e congelados) e as peixarias terem indicado a espécie, a área geográfica onde foi capturado e o tipo de pesca utilizado. «Em caso de dúvida na informação dada, o consumidor deve fazer perguntas, é um direito seu para poder fazer as opções que quer enquanto consumidor», assinala Marta Barata.
Chegamos aqui também à questão da aquicultura, que muitos afastam por considerarem uma pior opção a nível nutricional e de sabor. Algo que a especialista da Natureza-Portugal/WWF contesta: «Isso é um mito. A aquicultura sustentável e responsável pode ser a solução para o problema da sobrepesca. Ao longo de décadas, têm sido feitas tentativas para ir ao encontro da crescente procura de peixe e marisco com auxílio da aquicultura. Hoje, a aquicultura é o setor que regista o crescimento mais rápido no fabrico de produtos alimentares de origem animal. Atualmente, cerca de metade de todos os peixes e mariscos para consumo humano é proveniente da aquicultura. Comprar produtos certificados ASC significa fazer uma boa escolha».
Assim, para continuarmos a consumir peixe de forma sustentável, Marta Barata explica algumas recomendações: «Em primeiro lugar informando-nos sobre esse assunto. Evitar as espécies mais vulneráveis e apostar na diversidade - atualmente com receitas na internet não há desculpa para não apostar em novos peixes, especialmente se forem abundantes. Por vezes, por serem espécies menos procuradas são até mais baratas. Outra recomendação nossa é o cuidado com a arte de pesca associada às nossas escolhas. Imaginem ter um polvo de pesca de arrasto versus um polvo de captura com covos. Ora, o covo tem um impacto direto - só pesca aquele molusco - enquanto o arrasto traz tudo, inclusive afeta o fundo marinho. Outra preocupação deve ser o tamanho, ao escolhermos peixe e marisco de tamanho aceitável estamos a garantir que esta espécie já cumpriu parte do seu papel de reprodução, deixando descendentes que garantam a sustentabilidade da espécie. E, em último, vamos começar a desmistificar o ‘papão’ aquicultura. Já há produção de aquicultura praticada de forma responsável, e com o crescimento da população mundial esta é obrigatoriamente uma boa opção. A aquacultura certificada é aquela que a WWF defende - a etiqueta ASC já pode ser encontrada em grande parte dos supermercados portugueses».
Ação em todas as frentes
Para resultar, esta é uma ação que tem de ser assumida por todos os intervenientes, desde consumidores a fazerem as suas opções, a governos a tomarem decisões e passando por empresas pesqueiras, lojistas e restaurantes. É o caso da cadeia de hotéis Marriott em Portugal que, desde setembro de 2019, implementou uma ementa mais sustentável nos seus restaurantes, fruto de uma análise realizada à cadeia de fornecimento do peixe que servem. «Sustentabilidade será a vanguarda da nossa cozinha. A maioria das pessoas simplesmente encaram os peixes e marisco como alimento, infinitamente abundante, além de ignorar a sua importância para a biodiversidade, A realidade é que algumas espécies já se encontram ameaçadas e em vias de extinção. Associámo-nos a este projeto com o intuito de incentivar os hóspedes e clientes a fazerem a escolha certa. Abraçando esta causa, os nossos restaurantes apresentam uma carta com uma maior diversidade de peixes e marisco que tenham o selo de pesca sustentável», explica Elmar Derkitsch, diretor geral do Lisbon Marriott Hotel.
«Em caso de dúvida na informação dada, o consumidor deve fazer perguntas, é um direito seu para poder fazer as opções que quer enquanto consumidor»
O atum rabilho, na lista negra da sustentabilidade, por exemplo, saiu do menu. Outra medida foi que 50% do seu top 3 de consumo (salmão do Atlântico, dourada e robalo) seriam de origem certificada. E que 20% de todo o pescado adquirido pelos restaurantes da cadeia seja de origem responsável. O bacalhau, desde que de origem certificada (MSC), poderá ser incluído nos menus dos restaurantes da cadeia. O carapau poderá ser incluído nos menus dos restaurantes, procurando sempre que este produto provenha de pesca de cerco. A pandemia fechou os restaurantes, mas agora na reabertura o objetivo é continuar a cumprir. «Para nós é uma experiência muito boa. Temos o compromisso de todos os hotéis para continuarmos com ela», conta ao SAPO o responsável hoteleiro.
Impacto mundial da Europa consumidora
Já aqui vimos que a Europa é o maior mercado do mundo e o maior importador de produtos do mar. Mais de 50 por cento das importações de pescado da UE provêm de países em desenvolvimento. Para atender à nossa procura de pescado, dependemos fortemente de pescado capturado ou produzido no sul do globo. Assim, as pessoas e a natureza dos países em desenvolvimento dependem das nossas decisões de compra.
Uma vez que só mares saudáveis fornecem o alimento que desejamos e o rendimento necessários para 800 milhões de pessoas que dependem de pescado a nível global, percebemos que o equilíbrio tem de ser atingido. Um estudo desta associação ambientalista mostra, por exemplo, que o apetite europeu por camarão de Moçambique - 82% do camarão capturado nestas águas é exportado para a UE, sobretudo para Espanha e Portugal – colocou esta espécie outrora abundante sob ameaça. E como a captura de camarão aqui caiu de forma significativa na última década, algumas populações estão agora à beira do colapso por verem o seu modo de vida desaparecer. Ou seja, há não só uma implicação ambiental, mas também social quando se sobre explora um determinado recurso. «Já estão a acontecer implicações gravíssimas neste momento por consequência da nossa forma de consumo, não só ao nível ambiental, como ao nível social. Enquanto nós aqui consumimos de forma despreocupada, por exemplo um camarão vindo de Moçambique, há pessoas que sofrem as consequências desta nossa escolha na região, bem como outras espécies são afetadas por esta pescaria», realça Marta Barata.
Assim, por tudo isto aqui aflorado, não esquecendo o impacto das alterações climáticas na temperatura das águas e respetivas implicações no pescado, há que tomar decisões sustentáveis na hora da compra e do consumo. Afinal, é a lei da procura que dita os negócios, e essa está nas mãos de todos nós.