O SAPO falou com Andreas em Lisboa, umas semanas antes da partida, num pequeno jardim em frente ao Selim, a oficina onde, em parceria com a Cicloficina dos Anjos, esteve a montar uma bicicleta feita de peças usadas. De sorriso fácil e com uma energia positiva contagiante, conta os pormenores e as expectativas para a próxima viagem: : The Trash Cycle, 40 a 50 km por dia com encontros marcados com escolas e ONG.
É o quarto projeto a que o biólogo molecular se dedica desde que, em 2019, se despediu de um emprego fixo e estável para se focar no ativismo ambiental. Fá-lo de uma forma positiva e original, cria músicas no seu esforçado português, e a brincar já recolheu cerca de três mil toneladas de lixo em Portugal.
É surfista e a forte ligação ao oceano encabeçou os primeiros projetos: no primeiro ano, e numa caminhada de 160 dias pela costa portuguesa, recolheu uma tonelada de lixo ao mesmo tempo que ia criando músicas em que o ativismo se misturava com humor. Depois, em 2020, com centenas de participantes envolvidos, na The Plastic Hike, percorreu em 58 dias os 832 quilómetros da costa e recolheu mais 1,6 toneladas de lixo. No verão passado, também pelo litoral, com o mesmo objetivo mas um alvo diferente: as beatas de cigarros. Na The Butt Hike recolheu 1,1 milhões de beatas e juntou cerca de 600 pessoas e 70 organizações.
Pela primeira vez, Andreas vai viajar de bicicleta e pelo interior do país. Interessa-lhe criar consciência ambiental em todo o lado e também longe da costa, afinal, diz-nos, “o oceano começa em nós”. Ao longo de quase dois meses e em paralelo, vai também estar a divulgar uma petição para a criação de um sistema de depósito de garrafas de plástico em Portugal à imagem do que já acontece na Alemanha.
Arranca amanhã à tarde de Cascais em direção a Lisboa. A tempestade prevista para esta noite fez com que tivesse de adiar um dia a viagem. Apesar dos contratempos logísticos, o espírito positivo revela-se em forma para começar a viagem: “Com a tempestade, é muito provável que encontremos muito mais lixo na praia. Acaba por ser bom”, explica.
Quando começaste a preparar esta nova viagem e quais têm sido os desafios?
Depois do verão e de fazer o The Butt Hike, comecei a pensar no que fazer a seguir. Na altura do Natal, comecei a pensar melhor neste projeto e a prepará-lo em janeiro. Até pensei que o poderia fazer no verão, mas as escolas estão em férias e eu queria envolver muito as escolas. Entre o outono e a primavera, decidi avançar já.
Tem sido muito desafiadora, tenho imenso trabalho todos os dias mas também a sorte de ter algumas pessoas a ajudar, principalmente nos contactos com municípios, traduções, etc. Essas pessoas têm outros trabalhos e então eu sou o único concentrado a tempo inteiro neste projeto.
O maior desafio tem sido coordenar toda a logística. Nos 55 dias de viagem, já temos 40 dias com eventos com escolas ou com grupos que se vão juntar a limpar. É difícil coordenar tudo envolvendo todo o país.
Como surgem esses contactos?
Muitas das escolas e ONG são contactadas por mim mas também surgem muitos convites. Os dois projetos anteriores criaram uma rede de contactos de amigos e de voluntários e esta rede tem sido muito ativa. Há também algumas organizações que não conseguiram estar presentes nas outras iniciativas e agora vão participar.
Porquê de bicicleta desta vez?
Queria também promover a mobilidade verde e mostrar que há a possibilidade de usar a bicicleta tanto no campo como na cidade. Sei que estamos muito habituados ao carro, mas é tão fácil andar de bicicleta. Depois do projeto ao longo da costa, senti que deveria fazer uma viagem um pouco mais ousada e então quis apostar numa grande volta e dar uma nova vida a uma bicicleta velha. Aliás, nunca mais quero ter nada novo – esse é o meu próximo desafio: renovar ou criar um novo propósito para algo.
Como já temos muitos grupos a aderir já me sinto muito feliz.
Já nas outras iniciativas, o convite era aberto a todos que quisessem participar. Desta vez, podem juntar-se a pedalar também?
Sim, claro! Nos outros projetos havia um local e horário e as pessoas apareciam ou não. Por exemplo, em Viana do Castelo, que é uma cidade maravilhosa, ninguém apareceu. Depois, em Lagos, não estava à espera de ninguém e de repente apareceu um grupo de umas trinta pessoas.
Agora, com bicicleta, eu gostava muito que as pessoas se juntassem. Não sei bem como e não há nada muito planeado, mas a espontaneidade torna tudo muito melhor.
A Pinóquio, a carrinha que tem dado apoio às outras viagens e que serve também de casa, também vai? De onde surge esta carrinha?
Respondi a um anúncio no OLX e fiz uma troca: pagava a manutenção, os seguros e impostos e os proprietários emprestavam-me a carrinha. Assim foi. Não nos conhecíamos mas tornamo-nos amigos e ficam contentes que a carrinha sirva este propósito. Ela também vai nesta viagem, de apoio, logística e casa. Acho que é uma bonita história de como pessoas que não se conheciam de lado nenhum confiaram totalmente umas nas outras.
A ideia é também viajar com muito pouco. Este é um grande desafio?
Eu sou muito minimalista e sou vegetariano desde muito cedo. Adoro frutas, vegetais e frutos secos e são alimentos em que não é necessária embalagem. Fui reduzindo ao longo dos últimos anos o consumo de comidas embaladas e sinceramente agora é muito simples não comer algo embalado. Às vezes, precisamos de ser um bocado criativos e é claro que de vez em quando uso embalagens de papel e, mais raramente, algo com plástico também.
Mas não quero que isto pareça que não se pode usar plástico e que temos de ser perfeitos. Isso é quase impossível. O que precisa de mudar é o sistema. Muitas vezes não temos opções de consumo sustentável e temos de ter tempo para conseguir planear e pensar como vamos consumir. Também sei que às vezes lojas de produtos locais são um pouco mais caras e não é possível toda a gente ter estes cuidados.
Ninguém precisa de ser perfeito, mas o mercado também se vai ajustando às necessidades das pessoas. Nota-se que há mais opções sem embalagens de plásticos ou há mais produtos de comércio justo, por exemplo. Acho que esse é o grande objetivo: se todos fizermos um bocadinho, os mercados e os governos vão perceber e criar mudanças.
Tens viajado mais pela costa portuguesa e agora o percurso inclui atravessar o interior do país. Quais são as tuas expectativas para a sensibilização ambiental nestes territórios?
Não conheço tão bem o interior e acredito que esta consciência ao longo da costa possa ser maior, porque há muitas ONG e ativistas ambientais baseados no litoral. Além disso, como estão perto do mar talvez o confronto com o plástico seja mais visível, ou seja, o problema está ali à frente dos nossos olhos.
A poluição está nas praias, mas eu quero mostrar às pessoas que o oceano começa noutras partes. O oceano começa connosco e não interessa a distância a que estamos dele. Os rios vão ter ao oceano e as toxinas são absorvidas pelos solos em todas as partes. Há um impacto no ecossistema em todos os sítios e tudo está relacionado.
O ativismo é normalmente associado a um espírito de luta, e mesmo no campo ambiental é assim exercido muitas vezes. Porque decidiste apostar nesta comunicação mais positiva para chamar a atenção?
Foi sempre muito claro para mim que a comunicação tinha de ser positiva porque eu realmente sou assim. Ando sempre sorridente e é uma característica que me apontam muito. Adoro pessoas, adoro animais e tento sempre ser muito respeitoso, sou naturalmente positivo. Não gosto nada de discussões e às vezes as pessoas até se aborrecem por nunca me irritar e compreender o outro lado [risos].
Gostava que as pessoas ouvissem a minha mensagem e acho que uma forma positiva, criativa e talvez com piada é o modo mais fácil de chegar às pessoas. As pessoas estão mais abertas a receber ideias assim e talvez que isto leve a uma mudança.
Também acho que é muito importante zangarmo-nos e apontar o dedo. Há ativistas a fazê-lo mas não é o meu forte.
A preocupação com o clima e a necessidade de alteração de hábitos é uma mensagem complicada de se passar?
Acho que as pessoas olham para o assunto como um problema demasiado grande e por isso é assustador começar a fazer algo. O que estou a tentar fazer é que estas pessoas possam começar a preocupar-se. Não podemos pressionar ninguém a começar a cuidar do ambiente, precisamos de mostrar o que estamos a fazer.
Até porque dizes que não estás a limpar nada. Estás apenas a tentar mudar as mentalidades.
Exato. Sei que é um processo lento mas espero que mude pequenos hábitos. Por exemplo, quando andámos a apanhar beatas – é algo tão simples e que todos podemos fazer na rua – ou quando apanhamos garrafas de plástico nas praias, toda a gente percebe que aquele objeto não pertence ali, algo não está certo. Mesmo que a pessoa não comece logo a mudar comportamentos, que sei que é muito complicado, ficou em contacto com o problema e talvez possa despertar algo no futuro. As ações de limpeza servem sobretudo para começarmos a fazer algo. Se o mundo inteiro começasse a fazer alguma coisa, entraríamos por um caminho muito bonito.
Daí a importância do trabalho com as crianças e de tantas escolas envolvidas neste novo projeto?
Sim, e é muito mais simples com as crianças. Têm uma mente pura e entendem muito bem, simplesmente porque é natural. Não são influenciadas pelo lucro nem por muita coisa. Percebem o que é certo e errado de uma forma muito simples. Também acho que têm muita facilidade em adaptar-se e aprender e a mudança vem das gerações mais novas por isso é realmente importante sensibilizar as crianças.
Li que mesmo no lugar mais remoto, consegues encontrar lixo. Como é a reação das pessoas? Já estamos mentalizados que há lixo em todo o lado ou ainda nos chocamos com a poluição?
Normalmente, as pessoas ficam chocadas. Seria bom que muitas pessoas fossem a alguns lugares ver até onde o lixo chega. Já não dá para fechar os olhos. Muitas pessoas acham que algumas imagens que mostro são dos rios mais poluídos, como na Ásia, mas há sítios muito poluídos em Portugal.
Ainda há pouco tempo, o The Guardian deu a notícia de que foram encontrados microplásticos no sangue. No ano passado, encontraram na placenta humana. É chocante.
E quais são os primeiros passos para a ação? Ou seja, quais as principais dicas para alguém que quer começar a mudar algo em prole do planeta?
O melhor exemplo é o saco de plástico. É completamente desnecessário. Então, quando se usa para guardar bananas ou laranjas. Mesmo para guardar outras frutas ou legumes, é como se desse a ilusão que por estar ali guardado está seguro, mas as coisas podem lavar-se e nós também não sabemos por onde passou o saco de plástico. Há uma ilusão de proteção mas é desnecessário. Estou sempre a desafiar para o uso de um saco de pano e simplesmente por lá todas as coisas dentro. Acho que é um passo fácil.
“Gasta-se mais água a fazer a garrafa do que a água que transporta. Isto não faz sentido nenhum”
O segundo passo pode ser uma garrafa de água reutilizável. E aqui podemos ver como a sustentabilidade por ser barata, porque temos uma garrafa mas evitamos estar constantemente a comprar garrafas de uso único. Uma garrafa de água ou refrigerante precisa de 5,3 litros para ser produzida. Gasta-se mais água a fazer a garrafa do que a água que transporta. Isto não faz sentido nenhum. Na maioria dos sítios em Portugal a água é muito boa e aqui em Lisboa, por exemplo, há chafarizes públicos onde podemos encher a nossa garrafa.
Ainda há duas pequenas iniciativas a decorrer em paralelo ao Trash Cycle. Uma delas é fazer um guia de mercearias e lojas com produtos biológicos e locais. Como vai funcionar?
A Raquel Fortuna Lima, que está a conduzir a carrinha e dá apoio logístico, é que quer avançar com esta iniciativa, mas pede baixas expectativas. Como está no terreno com a Pinóquio, vai também procurar os produtos para alimentação e gostava de fazer uma lista de locais onde é possível comprar local e biológico, mas não estamos a comunicar oficialmente este projeto. Queremos ver ainda no que pode dar. Acho um projeto maravilhoso mas não queremos pôr muita pressão.
E há também uma petição a que entretanto te associaste sobre a criação de um sistema de depósito em Portugal. O que se pretende?
A ideia é criar pressão sobre o governo para criar o sistema de depósito de embalagens para bebidas. Já não tem nada que ver com recolher lixo mas sim falar de soluções. Na Alemanha, por exemplo, uma garrafa de plástico pode valer um reembolso de 25 cêntimos. A ideia é dar algum valor ao lixo. Encontramos tantas garrafas de plástico, tanto nas ruas da cidade, mas também na natureza, e se lhe déssemos valor, as pessoas já não as deitariam para fora e provavelmente levariam-nas às lojas para reembolso. Além disso seria uma ótima forma de melhorar as taxas de reciclagem.
Vamos também recolher assinaturas através da petição, criada pela ONG Sciaena, que é nossa parceira, e apoiada por mais de 35 organizações em Portugal. Está também online aqui.