É 6 de dezembro de 2023. Reunem-se milhares de líderes mundiais e representantes de empresas emissoras na conferência de clima da ONU que virá a ser, pela vigésima-oitava vez, incapaz de vincular uma diminuição das emissões globais.

Centenas viajaram para o local, o Dubai, de jato privado. O mesmo meio de transporte capaz de poluir numa só viagem de Portugal para os Emirados Árabes mais que uma família média portuguesa num ano.

Neste caminho, estão conscientemente a arremessar-nos para além dos limites do clima, já repetidos por relatórios infindáveis até à exaustão científica e moral. E, mesmo assim, os governos e empresas emissoras dizem-nos para não ansiar — “nada é concreto, ainda há esperança se compostares”, ou algo igualmente absurdo.

Dia 6, um grupo de pessoas, eu entre elas, acorrentava os seus corpos a um jato privado em protesto à realidade acima. No final de julho concluiu-se o julgamento que nos condenou por isso.

Há algo hilariante, mas nada engraçado — algo absurdo sobre denunciar as emissões de jatos privados e as decisões evidentemente letais de um grupo muito pequeno de pessoas, e encontrares-te a ti no banco dos réus.

Abrimos as redes sociais e vemos um massacre, e depois um vídeo de um gato. O discurso institucional sobre a crise climática está largamente a este nível também. É suposto assumirmos a contradição: sermos dóceis e ter esperança, sem qualquer razão para isso. É suposto culparmo-nos apenas individualmente por um problema global, e ao mesmo tempo concordar que o dono de um jato privado possa poluir mais num ano de voos que uma pessoa comum numa vida inteira. É como se não houvesse alternativa ao futuro onde se descarrilam os ecossistemas necessários à vida, por um luxo.

Acabamos – pelo menos eu acabo – cada ciclo de notícias sobre clima à procura de esperança, quando esperança sem ação é um veículo sem motor: é só potencial. Por isso, depois de petições, manifestações, reuniões, relatórios e campanhas, todos infrutíferos — depois de plantar árvores e esgotar todos os escapes diplomáticos ao meu dispor — com receio acorrentei-me algumas horas a um jato privado. Daqui a 30 anos não quero dizer às minhas irmãs mais novas que tinha esperança, e viver com a vergonha de lhes deixar um deserto. Vou dizer que tentei tudo, que tentámos tudo.

Não é só em Portugal que se sente o fogo. Por todo o mundo a urgência espalha-se, e a normalidade pune quem soa o alarme ao invés dos culpados pela emergência. Há poucas semanas, no Reino Unido, cinco ativistas foram condenados a entre quatro e cinco anos de prisão por “conspirar” fazer um protesto. Por estar numa chamada de Zoom perderão anos da vida dos seus irmãos, cônjuges, filhos. Foram condenados a uma sentença considerada “inaceitável em democracia” por um relator das Nações Unidas.

Foram condenados por recusar o deserto, por ousar tornar esta crise impossível de ignorar, como serão o fogo ou as cheias ou a fome em qualquer território.

Em maio foi no Brasil que centenas de milhares de pessoas perderam tudo, após uma área maior que o Reino Unido ter ficado submersa. É agora o segundo ano consecutivo em que cada mês bate o seu recorde de temperatura, estabelecido apenas no ano anterior: um relógio errático, pontuado por quebras de colheitas e mais frequentes catástrofes que desfiguram territórios.

No próximo mês cairá outra bomba noutro local, e morrerão pessoas devido a emissões desnecessárias numa paisagem desconfortavelmente similar à em que morrem hoje sob exércitos: bairros destruídos, famílias debaixo de escombros. Já conseguimos dar cor aos relatórios ignorados - na Líbia disseram que o ar cheirava a morte depois das cheias que engoliram milhares no final do ano passado.

Há uma diferença, claro, entre um jato que larga bombas para matar, e um jato privado que emite gases com efeito de estufa por luxo no meio de uma crise climática. Há uma diferença na forma como olhamos para eles. Mas ultrapassa-me como consentimos, dóceis, com ambos.