Como surgiu a ideia deste Congresso?
Cristina Nogueira Silva (CNS) – Somos duas médicas ginecologistas e obstetras, da mesma geração, que partilham, além de uma amizade, pontos de vista similares no que diz respeito à prestação de cuidados de saúde de qualidade. Além disso, temos ambas um perfil académico que surge da nossa motivação intrínseca de ensinar (da mesma forma que tantos contribuíram para a nossa formação e estamos imensamente gratas). Por isso, são vários os projetos em que as nossas vidas se têm cruzado e este surgiu naturalmente de muitas conversas.
Maria João Carvalho (MJC) – Sim, a ideia do Congresso surgiu pela necessidade que encontramos na prática clínica de desenvolvermos sinergias comuns e vias de comunicação privilegiadas entre Ginecologia e MGF. A otimização da referenciação da MGF para a Ginecologia e a grande evolução, na última década, na nossa especialidade, criou-nos este grande desafio. Assim, gostaríamos de contribuir para um maior diálogo entre as duas especialidades e, simultaneamente, levar aos colegas que fazem a primeira abordagem às mulheres, o estado da arte em temáticas extremamente relevantes na nossa prática clínica, seja pela prevalência seja pelo impacto na qualidade de vida, de forma estruturada e pedagógica. Além disso, em eventos anteriores, tivemos já possibilidade de testemunhar a relevância da interação destas duas especialidades na prestação de melhores cuidados de saúde.
CNS – A construção do programa teve estes princípios subjacentes.
MJC – E os diferentes temas serão abordados muito do ponto de vista dos sintomas, nas queixas que nos chegam (à MGF e à Ginecologia) diariamente na nossa prática clínica. O desafio foi colocado aos palestrantes, que em todas as mesas redondas vão procurar integrar cenários clínicos, o que, acreditamos, permitirá uma aplicabilidade imediata das orientações clínicas.
O Congresso inicia-se com uma sessão sobre os desafios da contraceção desde a menarca à menopausa. Que desafios são esses?
CNS – Nos primeiros anos, após a menarca, é extremamente relevante um aconselhamento eficaz, mas que corresponda às expectativas das nossas adolescentes, uma população cada vez mais exigente e informada. Abordar eficácia, benefícios adicionais e efeitos laterais é relevante, mas redutor nesta população, que tem por exemplo preocupações ecológicas, incluindo nos métodos contracetivos e métodos absortivos (pensos, tampões, copos menstruais). É essencial desmitificarmos muitos mitos que ainda existem, a começar pelo mito que a idade contraindica alguns métodos! Depois ao longo de vida da mulher, o desafio é compreendermos as necessidades de cada mulher, que não são as mesmas de maneira nenhuma. Por exemplo, numa sociedade em que a mulher assume um papel cada vez mais central no mercado de trabalho, métodos independentes da utilizadora tornam-se cada vez mais atrativos.
MJC – Quando chegamos ao outro extremo da idade reprodutiva, a perimenopausa, surgem novos desafios, nomeadamente os benefícios não contracetivos da contraceção hormonal, como prevenção da osteoporose e a necessidade de integrar o risco cardiovascular e de cancro da mama. Nesta etapa, tipicamente, aparecem alterações do ciclo menstrual e sintomatologia vasomotora que necessitam de uma orientação clínica individualizada.
Ainda relativamente à temática da contraceção, a hormonofobia é uma preocupação em Portugal?
MJC – Os métodos hormonais, nomeadamente a contraceção hormonal combinada oral, é o método mais utlizado pelas mulheres portuguesas, de acordo com o inquérito sobre práticas contracetivas. No entanto, nos últimos anos têm surgido na prática clínica novos desafios na abordagem de doentes que não pretendem métodos hormonais sem um critério médico de não elegibilidade. Assim, torna-se importante salientar os benefícios não contracetivos e as novas formulações que integram hormonas distintas, com um melhor perfil de segurança.
“Nos últimos anos, felizmente tem havido uma maior sensibilização para a endometriose, mas há ainda um longo caminho a percorrer”
No caso das mulheres com patologia, qual a mensagem mais importante a transmitir aos médicos de família?
CNS- Diria a todos os médicos! Há uma preocupação relativa ao potencial efeito de métodos hormonais na saúde de mulheres com patologia de base, como risco de eventos tromboembólicos. Mas há uma mensagem fulcral: a gravidez pode ainda condicionar maior risco do que um método contracetivo eficaz! Por isso é precisamente nestas mulheres que é ainda mais importante evitar que ‘andem na corda bamba’! É precisamente nestas mulheres que o uso de métodos naturais ou de barreira pode não ser opção aconselhada, dada a baixa eficácia destes métodos com o uso habitual. Por isso é essencial recordar os critérios de elegibilidade dos diferentes métodos em mulheres com patologias, como fumadoras, obesas, hipertensas, diabéticas, com doença inflamatória intestinal, entre outras.
A endometriose é uma patologia que causa grande impacto na vida da mulher. Ainda é muito subdiagnosticada?
CNS – Nos últimos anos, felizmente tem havido uma maior sensibilização para a endometriose, mas há ainda um longo caminho a percorrer. De acordo com um estudo recente, realizado em Portugal, estima-se que haja, em média, um atraso de 8 anos no diagnóstico. De facto, a endometriose é uma doença complexa, com múltiplas combinações de sintomas possíveis, o que dificulta o seu diagnóstico. Mas é essencial estarmos todos alerta para a sua existência, a sua elevada prevalência e terminar com as ideias preconcebidas que é normal a mulher viver com dor.
A que sintomas deve estar atento o médico de família? Será, sobretudo, à dor pélvica?
MJC – De facto, a dor é o sintoma mais importante na endometriose. A dor pélvica cíclica e não cíclica pode estar associada a esta patologia. Muitas vezes, fazem parte do quadro clínico a dispareunia e, por vezes, a disúria e disquesia.
“A introdução do teste de HPV de alto risco como estratégia de rastreio de cancro do colo do útero trouxe uma enorme oportunidade de rastreio eficaz, sensível e específico, mas trouxe também um aumento significativo do número de testes alterados”
A dor pélvica ainda é subvalorizada, de alguma forma, pelas mulheres (pelo menos, numa fase inicial) e pelos profissionais de saúde?
MJC – A dor pélvica associada com a menstruação sempre foi uma entidade normalizada pelas mulheres ao longo das gerações. No entanto, ao longo dos anos testemunhamos as implicações pessoais, laborais e de relacionamento social que esta situação clínica implica. Nos critérios mais recentes, o diagnóstico pode ser feito com critérios clínicos, nomeadamente com base na história clínica, exame objetivo e exames complementares de diagnóstico. Uma visão dicotómica desta orientação numa fase inicial de aparecimento da sintomatologia será certamente orientada nos cuidados saúde primários. Os sinais de alarme para reconhecimento da doença serão o mote para reduzir o tempo de diagnóstico desta patologia.
Acreditamos que no século XXI toda a evolução tecnológica tem vindo a contribuir para uma grande melhoria da qualidade de vida destas mulheres. Destaca-se a abordagem diagnóstica, tratamento médico e tratamento cirúrgico.
Relativamente ao HPV, qual a realidade atual ao fim de vários anos de vacinação?
CNS – Em primeiro lugar, é preciso reforçar que o HPV não é apenas causa de cancro do colo do útero. O HPV é um carcinogéneo humano, reconhecido como etiologia de cerca de 5% de todos os cancros (mais do que o tabaco): quase todos os casos de cancro do colo do útero, 70% dos cancros da vagina e 40% da vulva, 47% dos cancros do pénis, 90% dos cancros anais, até 72% dos cancros da orofaringe e 10% dos cancros da laringe. Por isso, a vacinação contra o HPV é, sem qualquer dúvida, uma estratégia de prevenção primária eficaz, custo-efetiva e segura, com múltiplos estudos a demonstrarem taxas de seroconversão de 97 a 100% da população vacinada e um claro impacto na redução da carga de doença associada ao HPV. Contudo, o impacto na redução da doença oncológica é logicamente um processo mais lento.
A vacina contra o HPV foi incluída no PNV em 2008 para as raparigas nascidas a partir de 1992 (portanto, atualmente com 32 anos), inicialmente com a vagina tetravalente (contra 4 genótipos responsáveis por cerca de 70% dos cancros do colo do útero em Portugal) e só em 2017 surgiu a vacina nonavalente (contra 9 genótipos, com potencial para prevenir 89% dos cancros associados ao HPV e 82% das lesões pré-cancerosas do colo do útero, vulva, vagina e ânus). Relativamente aos rapazes, a vacina foi introduzida no PNV em 2020 para os rapazes nascidos a partir de 2009. Por isso, mantendo-se a elevada taxa de cobertura vacinal pelo PNV, o impacto na redução da doença causada pelo HPV será enorme! Mas é necessário não esquecer que temos ainda uma elevada percentagem de mulheres nascidas antes de 1992 não vacinadas. E é precisamente nas mulheres mais velhas que o risco de persistência e progressão da doença é mais elevado.
É, por isso, essencial mantermos programas de rastreio do cancro do colo do útero efetivos. A introdução do teste de HPV de alto risco como estratégia de rastreio de cancro do colo do útero trouxe uma enorme oportunidade de rastreio eficaz, sensível e específico, mas trouxe também um aumento significativo do número de testes alterados, com dificuldade de resposta dos diferentes serviços de Ginecologia-Obstetrícia em todo o país. Os colegas de MGF são, por isso, muitas vezes os únicos médicos a quem as pacientes têm acesso durante meses, sendo por isso essencial abordarmos esta temática e revermos os mais recentes consensos.
“A mulher na menopausa necessita de cuidados integrados. Além do tratamento farmacológico, deve ser incutida a necessidade de estilos de vida saudáveis”
O que deve melhorar neste âmbito?
CNS- Temos de continuar a promover o rastreio organizado do cancro do colo do útero, mas também a taxa de resposta atempada da consulta de patologia do colo. Outra medida essencial é o aconselhamento da vacinação a mulheres (mas também homens) que não estão ainda vacinados. A evidência científica é clara quanto à eficácia da vacinação em mulheres mais velhas, prevenindo a reativação e reinfeção pelos genótipos presentes na vacina. E mais: em mulheres com histórico de lesões cervicais, a vacinação reduz o risco de novas lesões pós-tratamento.
No caso da menopausa e da perimenopausa, qual deve ser o papel do médico de família para que esta fase da vida não tenha de ser penosa?
MJC – Após a menopausa instalada, é importante reconhecer a necessidade de instituição de terapêutica para alívio da sintomatologia característica. Nesta faixa etária é importante integrar possíveis contraindicações, para além dos riscos e benefícios. A mulher na menopausa necessita de cuidados integrados. Além do tratamento farmacológico, deve ser incutida a necessidade de estilos de vida saudáveis, prática de exercício físico, dieta equilibrada e evicção tabágica. Os cuidados de saúde primários são a plataforma ideal para esta abordagem.
Para terminar, que mensagem gostariam de deixar aos colegas de MGF?
CNS – Estou convicta que a interação da MGF com as diversas especialidades, neste caso específico com a Ginecologia, é fundamental para a prestação de cuidados de saúde holísticos e centrados verdadeiramente na mulher. Acredito que nestes dois dias vamos criar muitas pontes, aumentando a proximidade dos serviços de que vimos, sejam os palestrantes, os moderadores (ginecologistas e médicos de MGF), os participantes no congresso. Serão pontes que nos permitirão um diálogo mais direto sobre casos específicos. Mas também estaremos mais capacitados para a melhor orientação e tratamento das nossas pacientes. Nós, ginecologistas, porque compreenderemos melhor o dia-a-dia e as dificuldades dos colegas de MGF na sua prática clínica; os colegas de MGF, porque esperamos trazer de forma didática as atualizações da nossa especialidade nos temas abordados.
MJC – A Ginecologia funcionará certamente muito melhor, numa perspetiva célere e diferenciada, com os cuidados de saúde primários bem preparados e alicerçados da melhor abordagem a cada situação clínica.
Maria João Garcia
Artigo relacionado