Corria o ano de 1949 quando a 30 de novembro, uma quarta-feira, Lisboa deu as boas-vindas ao Maxime Dancing. Rapidamente se tornou ponto de encontro dos amantes de uma vida mundana e cosmopolita, artistas e voyeurs, movidos por uma atitude transgressora, com vontade de inovar e liberalizar os velhos costumes. Ruidoso, animado e com uma imagem garrida, o Maxime é, desde sempre, o porto de abrigo para quem procura uma esfuziante e desordenada alegria.
Ainda hoje encontra esse espírito no Maxime. Desde que inaugurou, ao longo dos 75 anos de existência até ao presente, sempre foi palco de uma programação distinta, diferente dos restantes espaços noturnos e cabarets que se encontravam à época em Lisboa. “Maxime Time Machine” é também uma programação original: propõe uma retrospetiva que exalta as diferentes eras do mais antigo cabaret lisboeta. Entre 2006 e 2011, Manuel João Vieira, músico, pintor, professor, um dos mais influentes agentes culturais das últimas décadas em Portugal, foi responsável pela programação do espaço, e esses cinco anos permanecem na memória de muitos portugueses. Deu palco às artes marginais, à imagem do autoapelidado “artista marginal”, ao insólito, e por vezes, também ao absurdo. 14 anos depois, Manuel João Vieira, também líder dos Ena Pá 2000 e dos Irmãos Catita, apresentou o mais recente álbum “Tempo das Andorinhas: Cantigas de Dor de Corno”, num Cabaret & Concerto especial, como parte do programa “Maxime Time Machine”, subindo ao palco com os “Corações de Atum”.
No próximo dia 29 de novembro, é tempo de assistir a “Amusing Bouche”, com Vanity Redfire, Veronique Divine, KinaKarvel e Fraulein Margret. O Maxime Cabaret Show, representação máxima dos espetáculos atuais do cabaret lisboeta produzidos por Jaya Girão, da produtora Voix de Ville, encerra as festividades deste 75º aniversário, a 30 de novembro, com a artista internacional que se estreia em Portugal, Ruby Monroe, International Burlesque Top 50 2023 - Miss Viva Las Vegas 2022.
Excesso tolerado pelo Estado Novo
O historiador João Macdonald pesquisou toda a história do Maxime e, em conjunto com o chef Flávio Santos, elaborou uma ementa comemorativa dos 75 anos do mítico Cabaret que é possível degustar enquanto assiste a concertos de música ao vivo, espetáculos de burlesco, stand-ups, magia, todo um programa de entretenimento denominado “Maxime Time Machine”.
Para o historiador, realizar a pesquisa em torno da história do Maxime “foi como explorar um tesouro cultural e histórico, envolvendo múltiplas camadas do passado de Lisboa”. Sendo a casa noturna mais antiga de espetáculos em funcionamento contínuo em Portugal, “reflete as transformações sociais, culturais e artísticas do país desde 1949 e, este desafio exigiu olhar além da superfície para captar as mudanças do clube, dos frequentadores e da relação com o contexto lisboeta”. Começou por ser um dos mais frenéticos espaços da boémia lisboeta, onde se “buscava um lugar distante do olhar alheio, onde o excesso existia e era tolerado pelo Estado Novo”.
Recorreu a diversas fontes: arquivos históricos, anúncios em jornais antigos, guias de viagem, fotografias e filmes, além de entrevistas com artistas e empresários que estiveram ligados ao espaço e que foram essenciais para construir uma narrativa mais completa. Este trabalho foi um esforço de meses, envolvendo uma pesquisa exaustiva em bibliotecas, arquivos e entrevistas. Foi necessário construir uma cronologia detalhada, começando desde a inauguração em 1949 até os dias de hoje, capturando tanto os períodos áureos quanto os de decadência. Muitas informações foram recuperadas de anúncios e notícias de jornais antigos, como o Diário de Lisboa e o Diário Popular, que documentaram a inauguração e os artistas que passaram pelo palco do Maxime. Guias de viagem internacionais dos anos 50 e 60 também ajudaram a revelar como o Maxime era visto fora de Portugal. Além disso, obras literárias e memórias de figuras importantes, como o empresário João Pina e o ator Raul Solnado, ofereceram visões pessoais e detalhadas sobre o clube. Os elementos visuais, como fotografias e cartazes promocionais, também foram cruciais para entender o ambiente e o design do espaço.
Maxime, um borbulhante caldeirão
Juntando todas essas peças, foi possível a João Macdonald, construir um retrato abrangente das "várias vidas" do Maxime, desde um símbolo da sofisticação noturna até um marco cultural em decadência, passando por tentativas de revitalização. “Situado num eixo cultural marcante que inclui a Praça da Alegria e o Parque Mayer, emergiu como um espelho das influências europeias em Portugal, tendo o jazz, o swing, o fado, trazidos por artistas internacionais e portugueses, respetivamente, marcado profundamente a atmosfera do local”. A pesquisa revelou “como o Maxime se integrou à cena artística, frequentado por jornalistas, escritores e músicos, que o usaram como cenário e inspiração”. Os resultados mais importantes destacam “a capacidade do Maxime de se adaptar ao longo das décadas e de permanecer relevante em diferentes contextos, refletindo o espírito da sociedade lisboeta em cada período”.
O borbulhante caldeirão que era o Maxime tinha uma programação cultural vasta, que casava cabaret ao jeito do homónimo francês, Maxim’s. A França, mais precisamente Paris, era a grande influência de Lisboa. João Macdonald fala de uma influência francesa desde logo na moda, “numa altura em que os grandes costureiros franceses eram os mais importantes”, e que depois “se expande para outros campos da sociedade e nomeadamente a cozinha”.
Nova carta inspirada em Lisboa Antiga
Depois de uma consulta exaustiva das ementas servidas no Maxime desde a fundação, bem como menus antigos de restaurantes da capital, o historiador João Macdonald e o chef Flávio Santos chegaram a uma ementa composta por clássicos, muitos com a marca da cozinha francesa, e outros tipicamente “alfacinhas”. Entre os pratos mais representativos desta influência e que fazem parte da ementa está a “Terrine de foie com pera em Porto e brioche” (€19). Como entradas destaca-se ainda o “Creme de alho francês trufado com creme fraîche e cebolinho” (€4), enquanto dos pratos principais constam os intemporais alfacinhas “Bacalhau à Brás” (€19) e o “Bife à Marrare” (€24). Flávio Santos explica que “os pratos que “repescámos” para esta ementa comemorativa refletem uma jornada pela história gastronómica de Lisboa e são fruto direto da gratificante pesquisa que fizemos com o João Macdonald, que nos trouxe detalhes fascinantes sobre o que se comia nos restaurantes e hotéis da cidade, ao longo dos últimos 75 anos”. Desta forma conseguiram “criar algo autêntico e significativo”. Por exemplo, a “Terrina de Foie com Pera em Porto é uma homenagem à afinidade cultural entre Lisboa e França, algo que sempre marcou a nossa gastronomia, especialmente nos tempos áureos da alta cozinha enquanto o Bacalhau à Brás, embora seja muito comum hoje, tem uma história intrinsecamente ligada a Lisboa”. Quanto ao “Bife à Marrare” “é um prato que também fala deste lado cosmopolita, criado pelo napolitano António Marrare, que detinha uma série de cafés em Lisboa e que concebeu esta receita com base no conhecimento trazido das suas origens, indo ao encontro do que os clientes procuravam e dos ingredientes locais”.
“Este menu é um pedaço de história servido à mesa, um exercício de preservação de memória que nos parece necessário, num momento em que a cidade, aos olhos de quem a viu noutros tempos, vai perdendo algumas características a identidade”, comenta o chef e confessa o seu “maior desejo”: que quem “prove esta ementa se sinta transportado no tempo, perceba que cada prato é uma peça de história, um reflexo de uma Lisboa que viveu tantas transformações, mas que não quer perder o charme e a riqueza cultural”. Deseja ainda que “sintam uma certa nostalgia, mesmo que seja por uma época que não viveram, e que cada sabor os conecte com as tradições e memórias da cidade, que a experiência seja envolvente, sintam o peso do legado do Maxime, lugar que sempre foi sinónimo de fantasia, luxo e celebração”.
A ementa do Maxime (Praça da Alegria, 58, Lisboa. Tel. 218716600) é sempre servida à carta, de quarta a sexta-feira.. Aos sábados, quando há dinner-shows, existe uma proposta de menu degustação e o preço varia entre os €75 e os €85, dependendo da proximidade ao palco.