A passagem pela linha do Equador e por significativas variações de temperatura conferem ao moscatel de Setúbal propriedades excecionais, constatadas desde os tempos das demoradas travessias marítimas. E este era o objetivo de mais uma experiência do vinho Torna Viagem quando, no âmbito as comemorações do V Centenário da Circum-Navegação Fernão de Magalhães, o vinho partiu a bordo do Navio Escola Sagres, com uma rota de passagem prevista por 22 portos de 19 países em 12 meses. E a partida deu-se a 5 de janeiro de 2020.
A bordo do navio seguiram dois cascos de 600 litros e um de 400 litros de Moscatel de Setúbal José Maria da Fonseca: um casco com Moscatel de Setúbal 1956, outro com Moscatel Roxo de Setúbal 1985 e outro com Moscatel de Setúbal 2000, este último já tinha feito uma viagem a bordo deste navio em 2007, sendo assim um ‘duplo’ Torna Viagem.
A viagem foi interrompida devido à pandemia que assola o mundo, mas ainda assim durou cerca de quatro meses, tendo atravessado duas vezes a linha do Equador. Assim, «como era de esperar, o vinho Torna Viagem teve uma alteração igual à de edições anteriores uma vez que cruzou duas vezes o Equador. Inicialmente iria atravessar seis vezes a linha do Equador nesta viagem à volta do mundo, mas devido à pandemia a viagem foi interrompida, já o navio Escola Sagres estava no Pacífico. Já de regresso a Azeitão e depois de provado constatámos que o vinho ficou mais escuro e mais evoluído no aroma e paladar», conta, ao SAPO, Domingos Soares Franco, enólogo sénior e administrador da José Maria da Fonseca e membro da sexta geração da família de produtores de vinho.
Esta foi a oitava experiência de Torna Viagem da era moderna, desde que foram retomadas as experiências em 2000. Os primeiros Torna Viagens fizeram também viagens mais curtas com efeitos notórios no vinho. Daí que os efeitos conseguidos este ano sejam semelhantes: «As alterações foram muito semelhantes às registadas na grande maioria dos Torna Viagens da época moderna, o vinho regressa mais complexo, redondo e aveludado. Até à data, das oito viagens realizadas desde 2000, apenas uma dessas viagens deu a volta ao Mundo, as restantes foram viagens mais curtas de cerca de 4/5 meses. A condição fundamental para um Moscatel Torna Viagem é a passagem de pelo menos duas vezes a linha do Equador, facto que aconteceu na viagem deste ano», explica Domingos Soares Franco.
Esta viagem tinha o intuito de avaliar a influência da viagem marítima no moscatel de Setúbal. Para isso, a José Maria da Fonseca irá comparar as ‘testemunhas’, ou seja, os cascos de moscatel de Setúbal das mesmas colheitas que permaneceram na adega com os moscatéis que viajaram. As alterações bruscas de temperatura, o balanço do mar e a salinidade atribuem características ímpares ao vinho, mas invariavelmente ele regressa mais complexo, redondo e aveludado acentuando o carácter único do moscatel.
A viagem deste ano teve uma outra particularidade, um casco de moscatel voltou a repetir a viagem, tornando-se num exemplar único de vinho que faz duas vezes uma viagem pelos mares. E as ondas, as temperaturas, os climas continuaram a influenciar a doce bebida. «Regressou um pouco mais escuro e mais evoluído no aroma e paladar com esta segunda viagem», conta o enólogo.
Torna Viagem: uma experiência centenária
A história do Moscatel Torna Viagem remonta ao século XIX e é património histórico exclusivo da José Maria da Fonseca. Na época em que navios cruzavam os mares do Mundo fazendo todo o tipo de comércio, era comum levarem à consignação cascos de moscatel de Setúbal. Os comandantes, que recebiam uma comissão pelo que vendiam, nem sempre os conseguiam comercializar na totalidade. Na volta a Portugal, depois do périplo, em que se submetiam a diversos climas e significativas variações de temperatura, os cascos eram devolvidos à Casa Mãe.
Ao serem abertos, o resultado era quase sempre uma grata surpresa: geralmente o vinho estava bastante melhor do que antes de embarcar. A passagem pelos trópicos, a caminho do Brasil, África ou Índia, quando atravessava por uma ou mais vezes a linha do Equador, melhorava a qualidade do moscatel de Setúbal e conferia-lhe grande complexidade.
Em 2000 a José Maria da Fonseca retomou as viagens com cascos de moscatel de Setúbal. Em parceria com a Marinha Portuguesa, em específico com o Navio Escola Sagres, a José Maria da Fonseca inicia a ‘Época Moderna dos Torna Viagem’, tendo já realizado oito edições – 2020, 2018, 2017, 2016, 2015, 2010, 2007 e 2000.
E o que acontece ao moscatel que regressa com novas propriedades? «As experiências Torna Viagem da época moderna permanecem longos anos nas nossas caves após as viagens, não tendo até à data chegado ainda ao mercado. Servem sobretudo um propósito científico e de património histórico da nossa empresa. A exclusividade e raridade destes vinhos generosos é ímpar e o meu irmão e eu deixaremos à oitava geração da família a decisão da venda destes vinhos», conta Domingos Soares Franco.
Quanto à experiência inacabada de 2020, a empresa não descarta a hipótese de voltar a enviar estes barris numa segunda viagem. «Caso haja disponibilidade por parte da Marinha Portuguesa, gostaríamos que voltassem a embarcar numa nova ‘Volta ao Mundo’», confidencia o administrador.