Nestes últimos dois anos em que tanto se tem falado, escrito e refletido sobre ChatGPT et al. e Inteligência Artificial (IA), convém não esquecermos a Inteligência Natural (IN), também chamada Inteligência Humana (IH), que foi a que, afinal, nos fez chegar a ambos, IA, ChatGPT e similares. É expectável que a estranha, maravilhosa e incomparavelmente nova IA tome de assalto conversas e debates, alguns dos quais imagina-se que levem a acesas discussões. Quando inexperientes num novo paradigma tecnológico, as nossas posições a respeito de benefícios ou prejuízos tendem a extremar-se, oscilando entre o deslumbramento de uns com a esperança benévola na humanidade do futuro e a excitação de outros proclamando a perdição total. Tais posições e outras tantas intermédias refletem as nossas preocupações a respeito do que ainda, de facto, não dominamos. O que não terá sido diferente em relação a muitas outras inovações radicais do passado.
Mas hoje relevo a IN, porque é imperativo não nos esquecermos dela. A IN está, e terá de estar, sempre a montante e a jusante da IA. A IA é uma tecnologia surpreendente, talvez a mais surpreendente que o ser humano criou até ao momento presente da sua história na Terra. Para alcançarmos a noção da radical novidade trazida pela IA e assim tomarmos consciência de que entrámos numa nova era da nossa aventura neste planeta, assim como da nossa interação com ele, basta atendermos à sua definição: tecnologia baseada em sistemas de computadores que simula a execução de tarefas de elevada complexidade que até há pouco tempo apenas os seres humanos eram capazes de realizar (esta é uma definição de entre várias, mas suficiente para o contexto e propósito desta Opinião). Entre estas tarefas, dizem os especialistas, incluem-se o raciocínio, a tomada de decisão ou a resolução de problemas. A IA promete rapidez na recolha e tratamento de informação e uma enorme capacidade para simular e estimar as soluções mais indicadas para os problemas, com inegáveis implicações nos processos de tomada de decisão, os quais se tornam, por seu efeito, mais rápidos e melhores.
Quem duvida de que cada nosso quotidiano se faz de incontáveis cogitações, mais ou menos exigentes tomadas de decisão ou resoluções de problemas, mais ou menos complexos? Muitos são também os pensamentos fugazes em que registamos para nós próprios as incrementais melhorias dos nossos comportamentos, que atestam a dinâmica da nossa cognição, os diferentes patamares das nossas aprendizagens, e bem assim a plasticidade do nosso cérebro. Ora tudo isto que constitui o nosso progresso individual verifica-se a nível coletivo e é indissociável do sucesso do ser humano como espécie dominante no planeta. Ou seja, muito antes da IA, a IN definiu-nos e tornou-nos naquilo que fomos em cada idade do passado, individual e coletivamente. Porque, acredito, a IA não é um substituto da IN, é esta que continuará a definir o que seremos daqui em diante.
A tecnologia sempre foi útil à sociedade, contribuindo para a melhoria dos processos sociais, e com essa melhoria dignificámos o ser humano. Não vale a pena perder tempo a sublinhar o quanto as transformações tecnológicas impactaram a longevidade da nossa espécie e a qualidade de vida ou a capacidade de eficiência produtiva, permitindo às empresas criar e, em troca, receber mais valor. Sabemos já que a aplicação de IA está a disseminar-se nas várias áreas da sociedade, como justiça, saúde ou banca, como suporte à tomada de decisão e com reconhecidos benefícios. Fiquemo-nos, por ora, pelos contributos positivos que a tecnologia tem proporcionado à humanidade ou pelos testemunhos benéficos a respeito da inclusão da IA nas atividades humanas, porque nada sabemos realmente acerca de como irá evoluir esta nossa parceria com ela. Está longe de ser consensual como ocorrerá essa evolução, se levará à substituição ou apenas à extensão da função liderança, por exemplo. Inclusive persiste a interrogação se é realmente de evolução que estamos a falar! Foquemos, por conseguinte, a IN que está subjacente à IA para reconhecermos como aquela, aquém e além desta, tem de continuar a ser a força motriz das sociedades, economias e empresas.
A gestão organizacional (ipso facto, empresarial) enfrenta hoje grandes desafios num mundo assolado por conflitos políticos de potencial magnitude global, e que testemunha episódios climáticos de cada vez mais graves impactos nas comunidades, e em que desequilíbrios económicos persistem ou se agravam nas várias regiões. Por outro lado, a evolução social e na teoria da gestão já não permite aos gestores tomadas de decisão à revelia dos interesses e necessidades dos diferentes stakeholders da empresa. Trata-se hoje de o gestor ser chamado a continuadamente construir uma visão da complexidade associada às rápidas transformações que ocorrem no ambiente externo e a tomar decisões com base nela, as quais não poderão mais deixar de incluir uma dimensão tão importante como a dos valores humanos. O que significa que a estrita lógica nas tomadas de decisão aplicada às grandes decisões estratégicas e aos objectivos de eficiência produtiva e rentabilidade, no âmbito dos quais a IA pode dar sólido e continuado apoio por inclusão de dados e outras relevantes fontes de informação, não basta para termos uma gestão organizacional à altura do que hoje enfrentamos: um mundo interconectado, complexo, incerto e muito problemático.
Hoje as sociedades estão muito necessitadas de gestores responsáveis, carismáticos, empáticos e criativos, (1) capazes de construir relações de confiança profundas e duradouras com as suas equipas, (2) que desenvolvem saber integral para além do conhecimento técnico que aplicam nas suas práticas e decisões de gestão, e (3) que exercitam a inteligência emocional sem vergonha da humanidade que nela se revela.
Hoje escolhi escrever sobre este assunto, da IN que surgiu antes da IA e existirá para além dela, para opinar que a IN continua a ser a razão por que devemos acreditar na humanidade e nos gestores que fazem uso dela na função de liderança organizacional. Hoje escolhi escrever sobre este assunto porque me revejo numa organização que tem sido um exemplo de como a gestão pela IN é, na realidade, a mobilização concertada das pessoas para o exercício de um propósito coletivo que as dignifica individualmente e afeta positivamente a sociedade.
Professora Auxiliar da Faculdade de Economia e investigadora do Cinturs, Research Centre for Tourism, Sustainability and Well-being, Universidade do Algarve