Ainda se tem de falar de cultura para se falar de touradas. Que assim seja, é o século em que vivo. A minha opinião é apenas a minha e enquadra este fenómeno como um conjunto de práticas tradicionais e simbólicas violentas, em que o homem domina, tortura e, às vezes, mata em consciência um animal que não é livre, para gáudio de uma parte da população.
Se, nesta definição, eu substituísse a palavra animal por homem ou por mulher, teríamos uma definição genérica de escravatura, que durante séculos fez parte da nossa cultura. E por que motivo tem vindo a ser abolida? Porque se passou a considerar, também à luz da lei, um direito natural que foi roubado a todas as pessoas sujeitas ao trabalho escravo. Elas nunca foram menores; o ser humano - neste caso, o ser humano branco - é que as enquadrou assim, bem próximas de como hoje continuamos a considerar os animais.
Para definir cultura, teria de recorrer às ciências sociais, à filosofia, à antropologia e a dezenas de pensadores (certamente pensadoras) que já o fizeram. Precisamente por ser uma construção humana em constante mutação, muda de século para século e muda mediante a ciência que a estuda. Mas a origem da palavra é simples e vem da cultura agrícola, da capacidade do homem gerar um cultivo das sementes que lança à terra, criando. É esta perspetiva ao mesmo tempo crua e poética que quero agarrar.
Tendo o ser humano aparecido em último lugar na cadeia dos seres vivos da natureza e a quem foi dado o privilégio da razão, da possibilidade de julgamento da sua ação e do impacto da sua ação, não deixa de ser surpreendente, aos meus olhos, que as suas escolhas passem por causar sofrimento aos seus pares, revelando falta de empatia, e aos seres não racionais que já habitam este planeta há um conjunto de anos considerável para eu nem conseguir conceber, revelando ignorância. E, sendo muito franca, numa altura em que o mundo grita de dor, em que várias classes sangram por dentro e por fora, começa a faltar paciência para quem não quer semear coisas diferentes daquelas que semeou toda a vida só porque as semeou toda a vida e para quem rejeita pensar com sabedoria na sua própria ação, porque isso implica humildade e um sistema de valores ao qual pertencem os direitos humanos e os direitos dos animais.
Não me apetece responder às considerações proferidas pelo toureiro ou pelo forcado ou pelo título que for do homem pequenino do qual já não me lembro do nome, até porque nem me dei ao trabalho de as ler completas. Sim, falta-me respeito pela sua atitude para ter esse impulso. Mas lutei há quinze anos na AAC (Associação Académica de Coimbra) pelo fim da garraiada, sem sucesso na altura porque não era sequer moda quanto mais assunto, embora hoje já não faça parte das festas académicas da Universidade de Coimbra. Luto, desde que me lembro, pelos direitos de quem não tem poder nem voz para se defender, grupo a que os animais fazem parte. E continuarei a lutar para que a cultura se renove por dentro, porque é feita por homens e por mulheres do seu tempo, pensantes, não mecânicos, sensíveis, evoluídos, respeitadores do meio envolvente, das pessoas e da natureza.
Não me despeço sem confessar que estou a terminar este texto a poucas horas de cantar num palco, em Évora, que também é palco de touradas. Podia alegar objeção de consciência para não fazer o concerto, só que o espaço para este tipo de cultura já é tão pouco, que a minha objeção pública veio por escrito. E confio que as sementes que aqui deixaremos hoje serão mais duradouras porque não desrespeitam nenhuma lei natural e nenhuma lei humana.
** Rita Dias é cantora, escritora e atriz. Lançou dois discos, participou no Festival da Canção e editou um livro de poesia em Portugal e no Brasil. Prepara-se para lançar novo disco e novo livro.