Não é que seja espantoso, depois de todo o circo a que assistimos quando o mesmo governo que anunciou com pompa e circunstância a contratação de Christine Ourmières-Widener para liderar a TAP, em junho de 2021, a despachava dois anos depois, com guia de marcha e sem carta de recomendação, apesar de a gestora ter conseguido resultados dois anos antes do prazo. Não é que deva surpreender-nos, depois de a responsável pelo "trabalho fenomenal" de reestruturação da TAP, publicamente elogiado pelo governo socialista, que lhe prometera mais de meio milhão de euros por ano, mais bónus (a fatura paga por nós, contribuintes), ter sido chamada ao gabinete do então ministro das Finança, Fernando Medina, para que deixasse a transportadora, e já agora o país, e sem fazer ondas porque era preciso "sacrificar alguém". Não é que fosse inesperado, depois de a bestial gestora ser publicamente tratada como uma besta, despedida em direto pela televisão quando recusou sair sozinha e vendo até os termos do contrato que o Estado lhe pôs à frente postos em causa para construir a narrativa colada a cuspo que dava argumentos à "justa causa" invocada por António Costa no despedimento da ex-CEO.
Nove anos de governação socialista habituaram-nos a trapalhadas bem piores, sempre com custos para o povo, utilizador ou não dos serviços. Lembra-se quando o supercompetente SEF foi desmantelado para salvar a face a Eduardo Cabrita, deixando-nos com uma insustentável confusão nas fronteiras? Recorda-se de andar a pagar salários de ministro a amigos em quem Costa confiava a representação de assuntos de Estado, como Lacerda Machado na TAP ou Costa Silva no desenho do PRR? Tem memória de quando havia famílias inteiras a trabalhar no governo e dos tempos em que havia baixas semanais no Executivo porque mais de uma dúzia de governantes se viram a braços com casos de justiça, que aliás chegaram ao primeiro-ministro, culminando com a queda de um governo de maioria absoluta?
O desgoverno socialista foi verdadeiramente pródigo em ações que, em paragens mais civilizadas, não terminariam sem responsabilização pública, política e efetiva. E os seus membros tornaram-se profissionais das artes circenses, fosse a fazer piruetas para distrair o povo do caos que iam deixando naquilo em que mexiam fosse em atos de contorcionismo para escapar às consequências de sucessivos erros e incompetências.
Ainda assim, é notável a indiferença com que um homem que toda a vida teve cargos de representação política — como ministro, deputado, autarca e quase uma década primeiro-ministro de Portugal —, e que neste momento aposta tudo na liderança do Conselho Europeu, sacrifica a competência ao serviço do país para manter o poder na mão.
Já o fizera antes, claro. Por exemplo, quando deixou cair Pedro Nuno ou João Galamba, quando declarou que nem era grande amigo do seu padrinho de casamento, Lacerda Machado, ou quando se afastou de Vítor Escária, ao descobrir-se que o seu próprio chefe de gabinete ali tinha escondidas dezenas de milhar de euros em nota. Porque havia de ter problemas em descartar alguém que nem sequer faz parte da sua lista de amigos e que, apesar das competências de gestão, melhor lhe servia como bode expiatório?
"Se isto se torna num inferno, é ela ou nós. Nós não nos safamos mantendo a senhora", explicou o ex-primeiro-ministro a Galamba e a Medina, fazendo tábua rasa do trabalho que Christine fizera na TAP; à custa de despedimentos e cortes de rotas, frequências e salários, é certo, mas obtendo resultados e chegando aos lucros de que Pedro Nuno ainda se gaba — "era uma empresa que estava parada, que quando assumi funções enquanto ministro dava prejuízos de 100 milhões e que deixámos saudável e a dar lucro", sublinhava o agora líder socialista ainda em janeiro, pouco antes de a transportadora voltar ao buraco, que já excede 70 milhões.
Provado que está, para quem dúvidas tivesse, que não houve sombra de "justa causa" mas apenas motivações políticas e defesa dos interesses individuais de Costa, Medina e Galamba para empurrar Christine Ourmières-Widener da cadeira, é certo que teremos de compensar a gestora pelos danos e pelo trauma de ter tido que lidar com um governo socialista. Os quase seis milhões que pede até são pouco... Justo seria, para variar, enviar a fatura a quem é responsável pelos estragos.
Editorial