Por muito estranho que possa parecer, entre as causas do sucesso da nossa espécie estão as mesmas que originam a corrupção e que, em graus diferentes, permeia todas as sociedades humanas e mina os regimes democráticos. Refiro-me às nossas capacidades para a cooperação e a reciprocidade.
Pode parecer surpreendente, mas é de facto isso o que está na origem do fenómeno 'corrupção'. As suas dinâmicas estão associadas à nossa história evolutiva, donde ser, virtualmente, inevitável, o que significa que o desafio deve ser encontrar formas de a minimizar e combater, sem pretensões de a erradicar, porque tal não é simplesmente possível.
Vamos tentar perceber porquê.
Do ponto de vista evolutivo, a corrupção é, antes de mais nada, uma forma de cooperação e reciprocidade profundamente encapsulada na nossa história, sendo bastante mais fácil de explicar do que a emergência dos modernos Estados impessoais e funcionais onde a maioria de nós vive.
Ainda em termos evolutivos, o Estado moderno é uma novidade sem precedentes no que se refere à capacidade e à escala de cooperação que exige dos seres humanos. Porém, esta mesma (grande) escala de cooperação que funda o Estado moderno é acompanhada, em paralelo, por um legado evolutivo de escalas menores de cooperação e reciprocidade (entre indivíduos ou pequenos grupos).
No fundo, aquilo que designamos por "corrupção" (para lá das questões jurídicas e morais) não é mais do que uma outra escala ou dimensão menor de capacidade cooperativa e de reciprocidade a funcionar e que terá surgido muito antes do próprio Estado. Em consequência, pode colocar em causa a cooperação a um nível e a uma escala muito maiores (sociedade).
Como é sabido, entre os seres humanos, a menor escala de cooperação encontra-se ao nível da família, pelo que os comportamentos que favorecem o parentesco são tão comuns e também os mais espontâneos.
A biologia evolutiva da seleção pelo parentesco (também conhecida por aptidão inclusiva) ajuda-nos a compreender (o que não significa aceitar), por que razão os indivíduos dão preferência aos membros da sua família.[1] Propõe a teoria que qualquer organismo tende a ajudar em primeiro lugar outro organismo desde que haja um mínimo de proximidade genética entre eles. A fórmula representa-se por β b> c, em que “c” é o custo suportado por um indivíduo para gerar o benefício “b” para outro indivíduo. O símbolo β traduz a relação estatística designada «coeficiente de regressão».
Em resumo, quanto mais próximos (geneticamente) os indivíduos, maior a possibilidade de se verificar comportamentos altruístas ou de reciprocidade entre eles. Portanto, por trás de cada ato de cooperação está, desde logo e em primeiro lugar, uma forma de "egoísmo genético", cujo objetivo é, prioritariamente, a preservação (e reprodução) de um certo genoma.
Em termos práticos isto ajuda a perceber por que razão os vínculos familiares tendem a ganhar prioridade sobre outras necessidades, nomeadamente as do Estado. Esta é a essência do nepotismo que grassa em muitas culturas voltadas para as famílias, algo que tem acontecido em termos políticos quando altos funcionários do Estado colocam os próprios filhos ou parentes próximos em cargos de decisão com acesso a recursos que o cidadão comum não consegue ter.[2]
O mesmo acontece, noutra escala, ao nível das relações de amizade e de interesse comum, as quais estão diretamente associadas à nossa propensão natural para a reciprocidade. Embora passe mais despercebido, esta é uma forma de corrupção muito antiga e quotidiana.[3]
A melhor forma de combater a corrupção passará não apenas pelos agentes policiais ou judiciais e os quadros jurídicos e a sua aplicação (que são necessários, embora insuficientes) mas também pelo estigma social da vergonha da exposição associada a esse comportamento e pelo escrutínio dos indivíduos que acedem a cargos públicos, algo que é muito deficitário nalgumas culturas (como a nossa). É a sua exposição e escrutínio que pode levar à sua redução (mas dificilmente à sua eliminação).
A corrupção, em graus diferentes, ocorre em países ricos e pobres mas incomensuravelmente mais nos últimos do que nos primeiros. As consequências, impacto e custos diretos e indiretos são proporcionalmente muito maiores nos países mais pobres, e tanto maiores quanto mais pobres são, pois é nestes que o Estado tem mais dificuldade em conseguir promover a cooperação em larga escala. Enquanto a corrupção num país muito rico pode significar que uma nova ponte tenha apenas quatro em vez de seis faixas, num país pobre pode significar, simplesmente ... nenhuma ponte.
Em conclusão, a corrupção é na verdade uma forma de cooperação enraizada na nossa história, e é mais fácil de compreender e explicar em si mesma do que explicar ao nosso cérebro moldado na savana o que é um Estado moderno, impessoal e funcional baseado na cooperação impessoal e em larga escala. Os Estados modernos representam uma escala de cooperação sem precedentes para o nosso cérebro (social e tribal) e esta cooperação atual, em grande escala, acaba por estar sempre ameaçada por outras escalas e práticas de cooperação menores, mais restritas e muito mais antigas.
Atenção: compreender e explicar um fenómeno não significa aceitá-lo. Não devemos confundir as coisas nem cair na falácia naturalista (segundo a qual "o que é natural é bom"). O que pretendo dizer é que para lidar e resolver um problema, primeiro temos de ter consciência dele e das suas origens.
O grande desafio das sociedades atuais talvez seja compreender primeiro a origem, causas e mecanismo do fenómeno em todas as suas dimensões, porque, quanto à sua forma de desenvolvimento, já a conhecemos todos relativamente bem.
Notas: Este artigo é uma adaptação reduzida do capítulo 2.7. Das origens e das causas da corrupção. Será uma questão de escala? que integra o livro Da Natureza das Causas: Psicologia Evolucionista e Biopolítica (2020). Edições Sílabo
[1] É a aplicação da famosa “fórmula de Hamilton” elaborada em 1963, por William Hamilton.
[2] Eis porque em muitas instituições não é permitido trabalharem indivíduos da mesma família até determinado grau de parentesco.
[3] Isto acontece, por exemplo, quando outras pessoas são preteridas para desempenhar determinadas tarefas ou cargos porque a simples relação de amizade ganha preferência. Eis como o “altruísmo recíproco” se mantém e reforça diariamente sem que disso nos apercebamos.
Paulo Finuras é Professor Associado Convidado ISG Business & Economics School – Lisboa e membro da Academia All4Integrity