O título do livro deu nome a um movimento que se propagou nos Estados Unidos, em resposta à sociedade de consumo, e que depois ganhou ecos em países como o Canadá e França – e que hoje inspira milhares de pessoas em todo o mundo.
Claro que a simplicidade voluntária é opcional – implica pensar nas prioridades da vida e no caminho que se quer seguir. Simplicidade não é pobreza. A primeira é uma escolha. A segunda não.
Numa altura em que nos preparamos para viver a maior crise dos últimos 100 anos, falar de simplicidade voluntária e consciente pode parecer um desaforo. A pandemia trouxe mais 100 mil desempregados em Portugal – no final do mês de maio registavam-se já 408.934 pessoas sem emprego. Perante a dimensão do desaire, não me atrevo a dizer que dinheiro não é vital.
(Abro aqui um parêntesis para sublinhar que o aumento da pobreza, a desprotecção dos trabalhadores e das suas famílias, o agravamento do fosso entre os mega-ultra ricos e todos os outros, as desigualdades, tudo isso já vem de trás e não nasceu com a Covid-19. Negar isto é passar uma intolerável esponja pela realidade, é branquear as injustiças que já lá estavam, é usar a pandemia como borracha da insanidade cíclica da desigualdade).
Voltemos aos números. Em 2007, pela primeira vez desde sempre, a população mundial a viver nas cidades ultrapassou a população a viver nas zonas rurais. As Nações Unidas calculam que, em 2050, 68% da população do planeta (dois terços!) será urbana. E, sobretudo para quem vive nas cidades, é óbvio que dinheiro é importante para garantir um nível de sobrevivência digna.
Simplicidade também não significa negar a tecnologia ou muito menos mudar-me para uma cabana na floresta. A ideia é simplificar a vida onde estou, com o que tenho – e a maior parte das pessoas que está a fazê-lo, das classes média e média-alta, vive nas cidades.
Associado à ideia de simplicidade voluntária vem outro conceito interessante – o downshifting. Em tradução livre significa “passo atrás” e retrata um conjunto cada vez maior de pessoas menos preocupadas com as promoções na carreira profissional, fatigadas até ao âmago, espremidas pelo cansaço, que se empenham em passar a viver equilibradamente e com uma filosofia de vida que sobrepõe a alegria de viver à alegria de consumir. O Australian Institute divulgou em 2016 um estudo que indicava que, nos últimos dez anos, 23% dos australianos adultos tinham adoptado uma filosofia de vida downshifter. O mesmo parece verificar-se por todo o mundo, em classes sociais diversas, com repercussões económicas ainda pouco perceptíveis.
Não é que grande parte de nós não o soubéssemos, mas a paragem que fomos obrigados a fazer devido ao estado de emergência mostrou-nos claramente que tínhamos vidas anestesiadas pelo trabalho. Se houve algo que esta crise revelou é que andávamos em atropelo permanente. Vivíamos, sim, em semi-cegueira, num mundo de urgências e ansiedades, de experiências cheias de camadas escorregadias de sentido que se nos escapava. Vivíamos uma espécie de escravidão – mas deram-lhe outro nome – que transformava muitos de nós em máquinas estúpidas e satisfeitas, que se julgavam livres quando estavam subjugados – numa obsessão tão arrebatada pelo trabalho. Se há alguma coisa para aprender com tudo isto é que necessitamos de equilíbrio. Não são precisas vidas perfeitas, mas conquistarmos alguma harmonia é obrigatório.
O nosso sistema económico baseia-se na ideia de vender mais e mais coisas de que as pessoas não precisam e isso tem invadido as outras esferas da vida humana, a ponto de começar a causar rupturas na família e na sociedade.
É impossível imaginar um mundo sem dinheiro ou um mundo em que o dinheiro não é usado para comprar o desnecessário, apesar de a internet, por exemplo, e as suas plataformas electrónicas, favorecerem a troca de produtos ou serviços. Há quem defenda que este é um dos caminhos para colocar o planeta nos eixos. Há inúmeros projectos online que nos permitem partilhar o que já não nos serve ou solicitar aquilo de que mais necessitamos, evitando o desperdício e o consumo desnecessário.
Desculpem cair na ideia estafada de que usamos o dinheiro para comprar uma falsa felicidade, mas é preciso lembrar os lugares-comuns de vez em quando: pode acontecer estarmos de tal forma cheios de coisas que vivemos num emaranhado de satisfações efémeras que nos distraem dessa essência, ou seja, de nós próprios.
A simplicidade voluntária é um caminho que se faz caminhando. Pessoalmente, gostaria de chegar ao ponto de não comprar nada ou praticamente nada de que não precise. Ainda estou muito longe desse estágio, mas quero alcançá-lo. Gosto particularmente da ideia do “bom materialista”, defendido por Vicki Robin, autora do livro “Dinheiro e Vida” e uma das pensadoras que mais tem escrito sobre estes temas. “O bom materialista é aquele que tira proveito máximo dos bens materiais. Se tem uma coisa use-a muito, até acabar”, diz ela.
Para esta escritora americana, o verdadeiro significado da palavra frugalidade é aproveitar tudo de cada coisa e de cada momento da vida. Até as acções mais simples. E, com coisas a mais, é difícil dar atenção a cada uma. Para mim, há pequenas atitudes para simplificar a vida e fortalecer o espírito de comunidade, sem precisar de ir viver para um grupo alternativo nas montanhas. Uma delas é dar parte do meu tempo a projectos pró-bono, porque acredito que sem o voluntariado o mundo simplesmente desabaria. Claro que os mais cépticos dirão que só dá quem tem para dar e que assim é fácil irradiar bondade e magia. Mas na matemática dos meus desejos está muito mais a necessidade de cultivar os valores humanos do que os materiais. E esse processo de nos questionarmos é tão íntimo quanto os dados do nosso saldo bancário ou o valor da remuneração anual.
Termino dizendo que, tendo eu o privilégio só de alguns de optar por uma simplicidade voluntária, um dos medos que tenho em relação ao futuro é o fosso da desigualdade que se vai abrir nesta crise mundial. Nos países pobres ou que atravessam crises financeiras terríveis, ou nas bolsas de pobreza dos países ricos, as pessoas desenvolvem a mentalidade da escassez. Começa-se a imaginar que até as coisas que não escasseiam são escassas. E isso resulta numa espécie de desespero em toda a gente. Até nos ricos. E provoca atitudes de ganância, de violência, do salve-se quem puder. Fico com um nó de aperto no peito a pensar no que aí vem. Ao mesmo tempo, quero acreditar que, como nação, teremos aqui uma oportunidade de nos revelarmos tão profundamente, inevitavelmente, atraentemente humanos.