“A Senhora protesta demais, eu acho.”
William Shakespeare (Hamlet, Acto 3, Cena 2).
No meio de todas estas diferenças mal amalgamadas sobre o estado das forças de segurança (explicadas aqui, na primeira parte deste artigo) seria prudente e aconselhável reflectir nos pontos seguintes:
O risco faz parte de um conjunto de profissões sendo mais ou menos gravoso entre elas – e não é fácil “graduar” essa diferença; as profissões são escolhidas livremente por cada cidadão e é de supor que todos tenham conhecimento dos riscos e penosidade associados; na valorização das profissões entram outros componentes para além do risco, como sejam o grau e complexidade de capacidades requeridas e a sua relevância para a sociedade; a “lei” da oferta e da procura – que o Estado deve tanto quanto possível regular – é um dado exógeno à componente anterior, mas não deixa de a afectar; muitas profissões “civis” que nada têm a ver com forças de segurança, também podem invocar riscos e perigosidades; os bombeiros, porque lidam com desastres naturais; os “almeidas” porque lidam com lixo; os administrativos dos hospitais porque atendem doentes; os guardas prisionais (que também querem a equiparação a força de segurança), porque lidam com cadastrados perigosos, etc.
No meio disto tudo existe ainda o parente pobre, que dá pelo nome de Forças Armadas (deve estar para rebentar a seguir, se é que ainda resta alguma coisa), cujos vencimentos durante muito tempo estavam harmonizados com as Forças de Segurança e deixaram de estar, onde naturalmente e por maioria de razão, a questão do risco se põe.
Em termos gerais a questão do risco – como subsídio – coloca-se de um modo diferente, já que não existe subsídio de risco para todos os militares (tal está englobado no suplemento da “condição militar”, existindo apenas um subsidio de risco para pessoal navegante (na Força Aérea); submarinistas e mergulhadores, na Armada e paraquedistas e pessoal que desactiva engenhos explosivos, no Exército. Este subsídio, porém, tem a ver com o facto do risco não ter carácter pontual, mas sim permanente, e na questão da penosidade/desgaste inerente.
Ora, de todas as considerações efectuadas, pode ou deve concluir-se que é no vencimento - base que deve estar o verdadeiro valor da remuneração referente à função exercida e que todo o tipo de subsídios deve ser reduzido ao mínimo e ser uma excepção, em vez de, em muitos casos, constituir a regra.
Acresce ainda o facto de haver casos, autorizados (!) de pessoal que efectua “trabalhos” fora do horário de serviço, que lhe paga o ordenado, como é o caso de membros das Forças de Segurança que efectuam “serviços gratificados”; e militares que trabalham como civis fora dos seus Ramos (o que não é permitido na PJ, e não era nas FA). O que tudo desvirtua.
Aqui chegados vamos ao fulcro e origem do problema.
No dia 24 de Abril de 1974, o Estado Português intervinha activamente - e sem extravasar as suas funções – na harmonização da sociedade, sobretudo a nível dos servidores do Estado. E note-se que utilizei o termo “servidores”, conceito que se exauriu rapidamente.
Todo o funcionalismo público estava agrupado estratificadamente e a quem era atribuído uma letra do alfabeto. Essa estratificação constituía também uma hierarquia nas profissões e funções equiparadas a que correspondia um determinado vencimento.
Para além de tudo isto havia um conjunto de profissões que constituíam uma espécie de “pilares” desse mesmo Estado, a saber: a Magistratura; o Generalato; a Diplomacia e a Cátedra. E todos eles, que constituíam uma referência para todos, estavam harmonizados desde o topo até à base. Os empregos e as profissões, fora do Estado, na chamada sociedade civil, não eram obrigados a seguir toda esta “lógica”, mas seguramente que a tinham como referência.
Para além disto as greves e os “lockouts” estavam proibidos, por estar previsto que os conflitos de trabalho fossem regulados através de conversações entre os grémios, que reuniam, digamos assim, os empresários, e os sindicatos nacionais, que juntavam os trabalhadores, sendo a assistência social assegurada pelas Casas do Povo, Casas de Pescadores, Misericórdias, Caixas de Previdência, etc.
A prática estava de tal modo arreigada que ajudou indirectamente ao golpe de Estado ocorrido entre o dia 24 e o dia 26 do tal Abril de 74 (aposto que não vão referir nada disto durante as anunciadas comemorações…).
Quero referir-me ao facto de que quando começou a rarear o número de concorrentes às Escolas Superiores Militares, durante a campanha militar ocorrida entre 1961 e 1974/5 e se tornava necessário aumentar substancialmente o que se pagava (dentro da lógica da oferta e da procura), para arranjar candidatos a oficiais dos quadros permanentes, que escasseavam, tal não foi feito, estou em crer, para não desarmonizar todo o edifício e estrutura existente.
Tentou-se outras vias diferentes, tarde e a má hora, que desembocaram no decreto-lei 373/74, de Julho, com as consequências (mal) conhecidas. Não por acaso, toda a classe de sargentos não participou na preparação do golpe de Estado: a situação em termos de vencimentos e carreiras tinha sido previamente revista, em 1969, por um governo do Professor Marcello Caetano.
Ora, como já se disse, a partir do dia 26 do tal Abril, tudo foi colapsando, gastou-se o que havia e não havia e os aumentos de salário e condições de trabalho, passou a ser conseguido aos gritos no meio da rua. E grupo que gritasse mais alto ou partia coisas passava a ganhar mais. Quando a vida social serenou um pouco e a Constituição de 76 entrou em velocidade de cruzeiro, depois de 1982, tudo passou a ser basicamente o mesmo.
Nunca mais se quis, conseguiu ou tentou, harmonizar as relações entre o trabalho, o capital e a equidade entre salários e valor do trabalho efectuado, muito menos se tentou premiar o mérito e castigar a incompetência, o desleixo e a preguiça. Tudo facilitado, ou comandado, pelas leis "socialistas" que a Constituição da República veiculava. Deste modo ressuscitou-se outrossim, a "luta de classes", o abuso da lei da greve e a conflitualidade e injustiças relativas, permanentemente.
Jamais se conseguiu algum acordo que se visse, em sede de concertação social, ao passo que os sucessivos governos deixaram de tratar adequadamente tudo o que tivesse a ver com fardas e retiraram capacidade aos respectivos comandantes para tratarem dos problemas do seu pessoal atirando com essas atribuições para cima de estruturas paralelas como são os sindicatos e associações – que agora parece já não conseguem controlar os seus filiados. Vamos todos amargar seriamente e ainda mais do que se tem verificado, pois o novelo de problemas vai aumentando.
E tudo tem sido organizado em termos de estruturas e legislação no perfeito olvido de como é (e reage) na realidade a natureza humana.
Enquanto não se conseguir harmonizar tudo isto minimamente, a agitação social não vai parar e a insatisfação será geral. A insurreição está em marcha e não parece ser só nas Forças de Segurança. Resta saber, quando isso acontecer, quem vai por ordem nas “Forças da Ordem”…[1]
Não se aprende nada.
[1] Escusado será dizer que em Portugal a Autoridade está praticamente destruída (e sem Autoridade não se pode fazer nada) e vai-se a caminho de se perder o respeito a tudo e a todos.
Oficial Piloto Aviador//O autor escreve pela antiga ortografia