Por volta de setembro do ano passado (2023) começou aquela que seria a obra mais mal planeada, executada e fiscalizada - pela escala - de sempre em Lisboa: a substituição dos abrigos das paragens de autocarro e a instalação da nova rede "explodida" de mupis e painéis publicitários eletrónicos da J. C. Decaux. Estranhamente, quase um ano depois, a obra ainda decorre e todas as enfermidades que o processo assumiu no princípios permanecem praticamente todas. Num ano não se aprendeu nada, a fiscalização continua a destacar-se pela ausência ou incompetência e os cidadãos ficaram pior servidos do que antes estavam. Por outro lado, e segundo o texto da Autoridade da Concorrência este contrato é uma "concessão à J. C. Decaux para a instalação e exploração publicitária na cidade, por um prazo de 15 anos, com a empresa a pagar 8,3 milhões de euros por ano". Este valor será atualizado anualmente de acordo com a taxa de variação média anual do Índice de Preços no Consumidor nos últimos 12 meses. O facto de se tratar de um contrato de 15 anos significa que todos os erros, lacunas e omissões do mobiliário urbano e dos abrigos de transportes públicos só poderão ser resolvidos daqui a... 15 anos o que deve servir de lição a todos os autarcas que, pelo país fora, negociam este tipo de contratos com concessionários.
De notar que a responsabilidade por este contrato é coletiva uma vez que o contrato com esta empresa, escolhida no âmbito do concurso público, foi aprovado pelo executivo camarário, com 15 votos a favor, designadamente 7 da liderança PSD/CDS-PP, 5 do PS, 2 do PCP e um do BE, ao que devem ser somadas duas abstenções do Livre e da vereadora independente eleita pela coligação PS/Livre. Nenhum voto contra: portanto.
1. As obras de instalação das paragens começaram em setembro de 2023 e durante meses deixaram os utentes dos transportes públicos em Lisboa, precisamente nos meses de maior pluviosidade em Lisboa (de outubro a março) sem proteção. Algumas das paragens obrigaram até os cidadãos a esperarem pelos autocarros da Carris em plena via de trânsito (p.ex. no Largo Frei Heitor Pinto em Alvalade) e isto durante a semanas a fio expondo-os a riscos de atropelamento e à chuva. Por outro lado, estas obras foram realizadas com desprezo quase total pela segurança dos trabalhadores que as executavam e pelos peões: durante semanas existiram cavidades no passeio público, algumas sem delimitação ou barreiras e quase todas com ferros sem cogumelos o que, em caso de queda, poderia ter consequências letais sobre quem eles tombasse. A substituição foi feita por zonas deixando quase freguesias inteiras sem abrigos nem locais para os utentes esperarem pelos autocarros: durante semanas! A substituição deveria ter sido gradual e faseada, paragem a paragem e não por zona: Pelo contrário e para servir o interesse da J. C. Decaux bairros inteiros ficaram com buracos nas ruas, com resíduos em sacos e sem abrigos - todos incompletos - e na mesma fase durante semanas. A instalação destes abrigos, por outro lado, em zonas de pavimento Uni Lisboa (o melhor pavimento pedonal de Lisboa) não o respeitou, destruindo-o e repondo o danos com a aplicação bruta e inestética de cimento. A remoção dos abrigos para táxis foi também mal executada: na Av. Óscar Monteiro Torres o abrigo foi removido deixando duas cavidades no passeio e durante semanas nada foi colocado no seu lugar, tendo-se passado o mesmo noutras praças de táxi de Lisboa.
2. Em termos de dimensões comparadas as novas paragens parecem idênticas às anteriores em comprimento, mas de um dos lados têm menor dimensão e, logo, maior exposição à chuva e ao Sol. Por outro lado, são mais altas, por forma a permitirem cartazes mais altos. Os bancos são de altura muito variável de paragem para paragem, por vezes lado a lado como se observa em dois abrigos na Av. Frei Miguel Contreiras (o que indica problemas e descoordenação na execução da obra). Em consequência alguns utentes ficam simplesmente na posição desconfortável de "pés no ar" (aqueles que têm menos de 170 cm de altura). Os vidros também não são opacos (como eram os das paragens anteriores) mas transparentes (com uma ligeira faixa com o logo da CML) e, logo, permitem a entrada de mais calor e propiciam a colisões aos peões mais distraídos: especialmente no vidro lateral que está de frente para o passeio público. As novas paragens também não têm as papeleiras que existiam nas paragens anteriores o que, certamente, irá aumentar a quantidade de resíduos nos passeios. Por fim, e a somar este já extenso rol de críticas, algumas (poucas) paragens têm os painéis publicitários colocados na direção do sentido do trânsito, por onde se aproxima o autocarro, obstaculizando a sua visão, mas forçando a olhar para a publicidade.
3. Em termos de oportunidades perdidas estas novas paragens são um caso notável. Numa operação desta dimensão (mais de dois mil abrigos substituídos) em que a substituição não se traduziu, na prática, por nenhuma melhoria de serviço, nem na proteção, nem na qualidade dos assentos, nem nos serviços (se descontarmos as polémicas e muito discretas portas USB: que já funcionam) é duvidoso que tenha sido ecológico ou racional fazer estas substituições: as paragens anteriores estavam em boas condições e não houve ganhos na sua substituição (exceto para os empreiteiros que as trocaram). Onde estão os telhados verdes (com vegetação) de algumas paragens holandesas que além de reduzirem a temperatura dos abrigos também contribuíram para a renovação da atmosfera e para a biodiversidade? Onde estão os materiais mais ecológicos e sustentáveis do que os dos abrigos anteriores? Onde estão os painéis solares das paragens francesas ou da cidade da Maia? Onde está o mais básico: iluminação noturna? (que, com painéis solares, podia ser autónoma). Onde está o WiFi aberto que algumas paragens tinham? O aumento da dimensão para impedir que utentes fiquem ao sol e chuva?
4. Incompreensivelmente os abrigos têm mapas em papel (terão: porque muitas ainda têm os painéis vazios) quando podiam ter mapas eletrónicos e com informações sobre as chegadas (substituindo as torres com as estimativas de chegada das carreiras). O benefício para a J. C. Decaux parece evidente (menores custos na substituição de cartazes e mais pontos de publicidade) mas e para a cidade e os seus utilizadores?
5. Os locais onde foram instalados (e, um ano depois, continuam a ser) os Mupis e grandes painéis eletrónicos foram previamente comunicados à Câmara Municipal de Lisboa (CML) assim como "o plano de instalação de publicidade" (o que se descobre na recomendação da Autoridade da Concorrência). Há vários locais que parecem desrespeitar vários regulamentos municipais: cortam faixas de peões, reduzem o espaço pedonal e algumas estão situadas junto a entradas do metropolitano. Pedi a lista ("peças do contrato") dos locais, com freguesia e arruamento, assim como os formatos das novas paragens mas nunca recebi resposta da CML.
5. A quantidade de painéis digitais (10% do total de 900) é excessiva e representa um perigo à circulação rodoviária sendo interessante manter, daqui em diante, um acompanhamento do índice de acidentes de trânsito onde estes grandes painéis foram instalados. Por exemplo, no cruzamento entre a Av. de Roma e a Av. dos EUA foram instalados dois grandes painéis (com mais de 6 metros de altura) em locais estrategicamente selecionados para serem mais visíveis mas em pontos de possíveis colisões entre veículos. Os vídeos que correm nestes painéis (p.ex. o da Praça de Londres) nas transições fazem flashes ou entram diretamente em imagens de cor vermelha total (anúncio do BPI) ou branco em flash (anúncio da própria CML sobre a "marca" Lisboa): o objetivo é claro: chamar a atenção dos condutores: é publicidade agressiva, interfere na tranquilidade das casas em redor e é um perigo adicional à segurança rodoviária. Estes métodos fazem parte da cartilha publicitária e estas sequências e vídeos deveriam ter em consideração este especto evitando o uso de cores contrastantes e vibrantes para que as mensagens se destaquem, mesmo à distância. Cores como vermelho, amarelo e laranja são altamente visíveis e, consequentemente, perigosas. O uso de elementos em movimento, para atrair os olhos, excessivamente complexos são outro risco de distração dos condutores. Quase todos - pela sua dimensão exagerada destroem o sistema de vistas e bloqueiam a visibilidade em rotundas. O interesse dos anunciantes, é descrito, no documento da AdC: "o mais valorizado pelos anunciantes, atendendo ao objetivo de sujeitar o potencial consumidor a um número significativo de exposições à mensagem publicitária no trajeto diário casa-trabalho e trabalho-casa". Sendo que este objetivo pode colidir diretamente com a segurança rodoviária.
6. Os Mupis eletrónicos que se encontram em alguns locais recebem - compreensivelmente - muita luz solar e consequentemente calor. Possuem, assim no seu interior, ventoinhas para arrefecimento dos sistemas internos que, nessas condições, entram em rotação máxima gerando mais de 80 dB (medição realizada em várias praças do Areeiro, Alvalade e Avenidas Novas). Este nível de ruído é comparável ao de um aspirador de pó tradicional ou a um alarme de incêndio e um ser humano, se exposto por longos períodos, a este intensidade de ruído pode registar desconforto, fadiga auditiva e, a longo prazo, danos à audição. Segundo as normas de segurança, a exposição a ruídos acima de 85 dB por um período prolongado não é recomendada e pode exigir o uso de proteção auditiva.
7. No decurso deste processo que deveria envolver abrigos usados pela Carris, colunas de informação, painéis de divulgação de informação institucional do município de Lisboa e de outras entidades com as quais colabora" foram também removidos abrigos - como o da Av. Óscar Monteiro Torres - que servia para os clientes dos Táxis deixando cavidades na calçada e os utentes deste serviço sem banco nem abrigo contra a chuva. Não é nítido se haverá substituição por um abrigo da J. C. Decaux (e a CML não responde à lista de locais destas substituições).
8. No âmbito deste contrato com a J. C. Decaux há também a referência à inclusão no mesmo dos "sanitários públicos" mas, por exemplo, no Areeiro apenas existe um sanitário (dos 75 previstos para Lisboa), que esteve abandonado durante mais de dez anos e foi agora reposto em funcionamento. A quantidade é manifestamente muito insuficiente para as necessidades, como atestam os inúmeros cantos com poças de urina que se observam um pouco por toda a cidade. Não consegui saber (a CML não respondeu à pergunta), também, a quantidade de novos sanitários públicos (os 75 parecem incluir sanitários antigos: com mais de dez anos), nem a sua distribuição, nem sequer o critério que assiste à sua distribuição. Nem saber, sequer, se a obrigação contratual de que pelo menos 10%, estarão mesmo preparados para receber utilizadores com mobilidade condicionada, nomeadamente em cadeira de rodas, será fiscalizada e cumprida. Já se sabe (ver publicação do "Lisboa para Pessoas") que "vão custar 10 cêntimos e o pagamento só poderá ser feito com moedas, uma vez que não existe qualquer mecanismo instalado para aceitar cartões bancários, contactless ou MB Way. Por outro lado, os equipamentos não serão capazes de dar troco, pelo que as pessoas terão de ter as moedas exatas à mão. Tudo isto criará desincentivos ao uso destes WC, numa cidade onde o comportamento de fazer necessidades no espaço público ainda é frequente, principalmente junto a interfaces de transporte público."
9. Por fim, é sempre intrigante quando num contrato envolvendo dinheiros, espaço públicos e autarquias encontramos referência a cláusula secretas: "indicam-se entre parêntesis retos […] as informações cujo conteúdo exato haja sido considerado como confidencial": o que levanta, sempre dúvidas legítimas, se o interesse público está a ser acautelado, se o dever de transparência está a ser cumprimento assim como o Código do Procedimento Administrativo.
Conclusão:
A implementação do novo sistema de mobiliário urbano em Lisboa, em parceria com a JCDecaux, revelou-se um projeto marcado por falhas de planeamento, execução e fiscalização. Os problemas identificados, desde a falta de proteção para os utentes durante as obras até à instalação de equipamentos ruidosos e inadequados, evidenciam uma gestão deficiente e um desrespeito pelos cidadãos e pelo espaço público.
A ausência de planeamento estratégico, a priorização dos interesses comerciais da empresa concessionária em detrimento das necessidades da população e a falta de transparência no processo decisório são questões que exigem uma profunda reflexão por parte das autoridades competentes. As consequências desta má gestão são múltiplas e incluem:
a. Prejuízo para os cidadãos: Condições precárias para os utentes dos transportes públicos, riscos para a segurança, poluição sonora e visual.
b. Desperdício de recursos públicos: Substituição desnecessária de equipamentos em bom estado e investimento em soluções pouco eficientes e sustentáveis.
c. Dúvidas sobre a legalidade do processo: A existência de cláusulas secretas no contrato e a falta de transparência nas decisões levanta questões sobre a legalidade e a ética do processo.
É fundamental que a Câmara Municipal de Lisboa promova uma avaliação rigorosa deste projeto, identificando os responsáveis pelas falhas e implementando as medidas necessárias para corrigir os problemas existentes. A participação da sociedade civil é essencial para garantir que as futuras decisões sejam tomadas de forma transparente e democrática.
A cidade de Lisboa merece um sistema de mobiliário urbano que seja funcional, esteticamente agradável e que priorize as necessidades dos seus cidadãos. A experiência com a J. C. Decaux serve como um alerta para a necessidade de uma gestão mais cuidadosa e transparente dos espaços públicos.
Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democratização dos Partidos