Olhando para o que me foi dado a viver desde dia 11 de Março, a minha mente é como a cuba de uma máquina de lavar, cheia de imagens. De estradas e portagens, cruzamentos, coordenadas de GPS, fronteiras, planícies e montanhas, estações de serviço, fronteiras, máquinas de café, mas sobretudo, dos rostos de crianças levadas ao colo e pela mão das suas mães ansiosas, que misturam sorrisos com lágrimas, cada uma com a sua história e com as suas estórias. Na bagagem, trazem pouco mais do que o medo com que preenchem o vazio da falta dos que deixaram para trás e que revelam uma coragem que talvez desconhecessem ter.
Ainda nem sequer comecei a processar os estímulos que me atingiram desde que saí da Associação de Serviço e Socorro Voluntário de São Jorge, numa caravana de 24 carrinhas e um autocarro rumo às fronteiras da Ucrânia.
Sendo impossível transmitir a imensidão de detalhes que antecederam a preparação desta missão, importa referir que saímos de casa com uma lista de nomes de pessoas referenciadas por ucranianos residentes em Portugal.
Logo após se ter começado a divulgar que iria ser constituída uma caravana para resgatar pessoas junto das fronteiras da Ucrânia, não pararam de chover pedidos de ajuda. Às duas ou três carrinhas originais, outras, oriundas de todo o país, foram-se juntando. A organização foi totalmente amadora e todas as limitações pela falta de experiência foram preenchidas com boa vontade e trabalho extra.
À hora da partida, a lista de voluntários ultrapassava as 60 pessoas. Desde a ideia inicial, até que uma caravana de 24 carros, dispersa por vezes ao longo de 3 ou 4 quilómetros de estrada, estivesse formada, não decorreu mais de uma semana.
Dentro dos veículos levámos comida, agasalhos e material médico e hospitalar, tudo doado, classificado e distribuído por toda a caravana. Eu fui apenas uma pequena peça desta enorme máquina que se formou espontaneamente, mas não posso deixar de sublinhar que sem as invulgares capacidades do Nuno Rebocho, o líder da dita máquina, nada disto teria sido possível. A combinação do seu empenho, da sua capacidade de liderança, de organização e, acima de tudo, da ambição de realizar algo assim, é de uma dimensão que só posso descrever como sendo um super-poder.
Além de várias toneladas de material, levamos connosco o que chamamos 'lista de compras'. Nela tínhamos os nomes, datas de nascimento e documentos de todos quantos eram esperados no regresso. A volatilidade alimentada pelas inúmeras coisas que estão a acontecer nestas fronteiras, somada às mais de 60 horas de viagem que necessitamos para lá chegar, fez com que esta lista sofresse permanentes actualizações.
Estas 24 carrinhas foram divididas em 4 grupos de 6, tendo cada um desses 4 grupos capacidade médica, mecânica e de tradução. Três seguiram para as fronteiras da Polónia e o quarto grupo, do qual fiz parte, dirigiu-se para a Roménia.
O recurso a estas carrinhas de 9 lugares teve como vantagem a flexibilidade de se poderem dividir, dirigindo-se a diversas fronteiras para recolher as pessoas identificadas. Na Polónia essa vantagem ainda se revelou mais importante pois acabaram por se conseguir encher vários autocarros em repetidas viagens feitas nessas carrinhas que os alimentavam.
O grupo da Roménia era constituído por 18 voluntários e tinha uma capacidade de resgate de 35 pessoas. A fronteira de Siret foi o ponto mais distante de toda a operação e para o atingir foi necessário atravessar os Cárpatos, o que em invernos rigorosos se torna numa tarefa especialmente exigente. A neve na berma da estrada fez-nos companhia durante centenas de quilómetros, mas felizmente encontrámos sempre estradas transitáveis. Ainda assim foram necessárias 9 horas para fazer 450 km.
Paulo Sousa apresenta-se como alguém que gosta de explorar a magia do mundo e de escrever sobre uma ínfima parte dele, no Delito de Opinião, onde o seu relato foi publicado originalmente.