A minha consciência pede-me que escreva. A noite de domingo foi lenta, dolorosa. Desde que me lembro de pensar politicamente, foi a primeira vez que tive o impulso de assumir uma casa partidária e de começar uma luta que ultrapasse o plano da cidadania e que chegue ao plano político. Foi no Livre, em 2015, que fiz parte da candidatura cidadã para as eleições legislativas, apresentei propostas, fui candidata a deputada à Assembleia da República, mas permaneci independente e afastada do partido, mesmo que seguindo o seu trabalho. Agora em 2024, para mim, a reflexão começou a sério depois dos resultados. Já não chega de dizer não passarão. Enquanto nós gritamos, a caravana passa. E se passa!
Não fiquei espantada com o resultado das eleições, embora tivesse esperado até ao fim que o fosso não fosse tão grande. PSD e PS perderam. O PS porque perdeu mesmo, o PSD porque teria perdido se fosse sozinho e, mesmo dentro da Aliança Democrática, escapou à rasca. Quanto ao CDS e ao PPM, forço-me a ficar calada, apelando a um minuto geral de silêncio. Relativamente ao BE, à CDU, ao PAN e à IL, tenho pouco a acrescentar a tudo o que já foi dito e que ainda será dito por pessoas sérias e de respeito, ainda que me pareça que o BE tenha desejado os três lugares que o Livre ganhou. Faltam, precisamente, o Livre e o Chega, que quadruplicaram a sua representação. Deixo o melhor para o fim.
Não dá para ignorar o Chega, principalmente quem vota no Chega. São a terceira força política, com mais de um milhão de votos. A minha maior reflexão está aqui. Como se lida com estes eleitores e estas eleitoras, que são as pessoas com quem nos cruzamos no dia a dia e que estão frustradas com o que se passa no nosso país? É tudo uma cambada de fascistas, racistas, homofóbicos, xenófobos e conservadores? Quanto tempo mais vamos desdenhar, às vezes oprimir, quem pensa de maneira diferente da nossa, mesmo que acreditemos veementemente que estamos certos, que estamos certas? São as perguntas que me coloco quando falo com um homem ou uma mulher machistas ou quando debato sobre touradas. É um exercício exigente, de autocontrolo emocional. Mais do que subestimar e deslegitimar a posição que me é oposta, quero entender por que motivo pensam como pensam e quero ter espaço para ser ouvida, para defender aquilo que acredito respeitar qualquer ser. Não sei se faço bem, que é irrelevante para o caso, só não espero que as modas passem sozinhas, nem me coloco num pedestal.
E isto leva-me, enfim, ao Livre. O Rui Tavares tem-se assumido o político em que eu acredito do princípio ao fim. Desde logo, porque foi o primeiro a abrir espaço à esquerda para coligação, lá em 2015, e curiosamente foi o partido que não fez parte da geringonça porque não teve votos suficientes para eleger. E o resto tem estado à vista: pensa, sabe, investiga, é culto, é sério, dialoga, é europeísta, aproxima-se das pessoas (ou dos concidadãos e das concidadãs, citando-o), espera, ultrapassa crises, tem uma visão para o país e, na parte que me toca mais, para a cultura, é arrojado nas propostas e moderado a defendê-las, respeita as regras democráticas e sabe que está ao serviço de uma causa maior do que ele, sem pódio. Encontro vantagens nos e nas restantes líderes que protegem a democracia, mas não encontro tantas juntas. Dá-me esperança. E desejo que assim se mantenha, para que a política se eleve e retorne ao seu lugar original de servir a população, o povo, a sociedade e todas as comunidades que nela se inserem.
O Pedro Nuno Santos é um ótimo líder da oposição, está na sua praia. O Luís Montenegro tem brasas nas mãos e veremos como a sua espinha dorsal se aguenta até à votação do orçamento. A Mariana Mortágua tem a tarefa árdua de resgatar os intelectuais precários e descontentes, talvez com menos sobranceria. O Paulo Raimundo bate a mesma tecla do PCP centenário, quando o país mudou. A Inês de Sousa Real é uma crente animal necessária e ainda bem que lá continua a semear grão a grão. O Rui Rocha é um perigo porque fala a sério quando defende as classes privilegiadas. O André Ventura é um perigo porque sabe que está a mudar a política portuguesa, mesmo tendo começado a brincar, e tem uma sede de poder que não se esgota nestas eleições e que não se esgotará até conseguir o que quer ou até que o país o expulse. Não foi nos 50 anos do 25 de abril que o expulsámos, só espero não ter de esperar pelos 100.
A minha última palavra vai para o novo jornalismo, responsabilizando mais os grupos que o promovem do que o grupo de jornalistas (tantos deles e delas precários) obrigado a segui-lo. Tenho a tese, desde a primeira eleição do Marcelo Rebelo de Sousa a Presidente da República, de que os órgãos de comunicação social estão a fazer um mau serviço à democracia. Teria de voltar à academia para comprovar, fazer comparações, mas talvez o meu palpite não deva andar muito desfasado. Em vez de serem um garante, são a exposição e a criação de feridas abertas, lesões sem cura. Estão a sobreviver, a pagar ordenados, a garantir audiências. Estão a dar mais espaço a comentadores, ao diz que disse, do que a políticos e a políticas públicas. É-lhes exigido rigor, informação e ética, pois eu sinto que estou a ver séries sensacionalistas da Netflix. Têm uma quota de responsabilidade neste resultado e na repetição exaustiva do André Ventura. É bom que reflitam também, para que a caravana não passe de vez!