Uma parte fascinante do meu trabalho é contar a história e as histórias de instituições, empresas, pessoas e lugares. Faço-o com entusiasmo e com paixão, acreditando no dever da memória, que é quase um mandamento de carácter moral. Na verdade, esta ideia do dever da memória, que surgiu no início dos anos 90, prescreve o dever de nunca esquecer. Na origem, o dever da memória referia-se ao Holocausto, esse acontecimento que se transformou num marco da história. Nunca esquecê-lo, para que ele nunca se repita: é este o sentido da prescrição. Mas a formulação do “dever da memória” é tão sedutora que rapidamente se foi alargando a outros acontecimentos. E pode muito bem ser aplicado assim: o dever de preservarmos o que é único, transformador, essencial, traumatizante, mas também o que é belo no mundo.
Quantas histórias, avanços e recuos, concretizações e desaires têm os países, as cidades, as empresas e as pessoas para contar? Inúmeros! Mas quem os conhece verdadeiramente? Muito poucos. Isso levanta-me duas questões: quem constrói a memória colectiva? Quem defende a memória perdida?
É possível contar a história de um espaço, de uma empresa, de um país, através de muitas memórias. Memória individual e memória colectiva. Memória natural e memória artificial. Memória auditiva e memória visual. Memória sensorial e memória intelectual. Memória afectiva e memória cognitiva. Memória actual e memória virtual. Memória política e memória histórica. Memória poética e memória fotográfica.
Do meu trabalho de resgate de memória, retiro um ensinamento que levo para a vida: preservar as histórias, recordações e lembranças tem tudo a ver com pedagogia e com rituais identitários. Tem como missão não apenas celebrar o presente, mas produzir passado. Seguindo a lógica da política da memória pública, feita em função dos superiores interesses nacionais: porque há coisas que é preciso recordar e fazer dessa recordação um ritual colectivo.
Felizmente, são muitas as pessoas e associações que trabalham para preservar a memória. Hoje, há uma consciência cívica mais vigilante relativamente aos “crimes de lesa património”. Existem mesmo movimentos que lutam contra a indiferença e a insensibilidade dominantes, embora muitas vezes ainda vença a lógica de vandalismo que enaltece o novo com prejuízo do antigo, mutila o que já existe sem que, no seu lugar, se construa nada que, sendo novo, também seja digno de memória futura ou de chegar a antigo. No contexto da União Europeia estamos no fim da tabela no que toca ao esforço de conservação e de reabilitação. A utopia das miragens, a utopia do futuro, foi para nós, portugueses, mais persuasiva do que a poesia das raízes.
Desengane-se quem acredita que a memória se esgota nos edifícios e monumentos. Um lobo que uiva na montanha representa mais do que o património genético que carrega. Ele evoca a lembrança de uma paisagem selvagem, da vida difícil dos pastores, dos cães que protegiam os rebanhos… E a esperança de um futuro de respeito e equilíbrio com a natureza.
E não tenhamos dúvidas: os lobos não sobreviveriam sem a compreensão dos habitantes que com eles partilham a terra, sem os biólogos, ou sem os guardas da natureza. As obras de arte, o mobiliário ou os livros não resistiriam ao passar do tempo sem o carinho dos proprietários, o zelo de quem trabalha nos museus e bibliotecas, ou sem os cuidados terapêuticos dos técnicos de restauro.
Não podemos saber quem somos se não soubermos de onde vimos. Isto é um facto. Mas nem sempre é fácil preservar essas histórias. Diria mais: para lutar contra a perda de referências é preciso alfabetizar a memória. Entristece-me que se tenha perdido o interesse em recolher memórias como contos, cantigas de embalar, histórias de pessoas e de lugares contados em discurso directo. A identidade local perde-se se não tivermos formas de nos conectar às origens – e isto, repito, tem tudo a ver com sustentabilidade.
A internet veio trazer novo fôlego à preservação da memória imaterial. É importante recolher em vídeo este património e disponibilizá-lo em múltiplas plataformas para que possa ser usado e partilhado por outros. E que as pessoas procurem filmes e fotos antigas que têm no baú e os disponibilizem online. E é preciso, a par de tudo isto, ouvir os protagonistas que guardam as memórias do passado, muito deles já instalados no território da velhice, e cujas histórias é preciso registar antes que morram. O mais extraordinário e mágico é retirar das pessoas que entrevistamos as memórias involuntárias – mágicas e magnéticas – e não nos ficarmos apenas pelas memórias voluntárias – vulgares, vigiadas e vulneráveis. Isso só se consegue com empatia, proximidade e muita vontade de ouvir o que elas têm para nos contar.
Quanto ao património material, termino com uma nota: é urgente conhecer melhor e amar, ainda mais, as raízes dessa árvore do património, que é o centro e o fundamento do verdadeiro espírito dos lugares.