Parece exagero, mas este paralelo foi feito pela Food and Agriculture Organization (FAO), Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, que já no longínquo ano de 2006, no relatório “Livestock’s long shadow environmental issues and options”, assumia que “a indústria alimentar contribui mais para o aquecimento global do que todos os meios de transporte juntos”. A pecuária, e em particular a bovinicultura, foi então apontada como “uma das principais causas da degradação dos solos e da poluição da água”.
Não sou eu que digo. Mas apesar da idoneidade da fonte, a informação não teve grande repercussão na indústria alimentar. Inacreditavelmente.
Quando vi pela primeira vez o documentário The End of the Line, inspirado no livro homónimo do jornalista e activista da Greenpeace, Charles Clover, que denuncia o impacto da indústria pesqueira na vida marinha, fiquei verdadeiramente perturbada. O filme passa com eficácia o alerta da comunidade científica para a necessidade de alterar, com urgência, a actual exploração dos oceanos. Segundo os especialistas entrevistados para o filme, as reservas de peixe para consumo humano entrarão em colapso em meados deste século, se nada for feito para o evitar. A pesca intensiva não só ameaça de extinção várias espécies de peixe, mas também destrói a um ritmo alucinante o ecossistema marinho com o sistema de arrasto. Aprendi nesse filme e nunca mais esqueci: uma rede de arrasto pode destruir uma área equivalente a cinco mil campos de futebol numa única viagem. É de loucos! E registem isto, que em nada nos ajuda a tranquilizar: actualmente só 3% dos oceanos são áreas marinhas protegidas.
O estudo da FAO e as dezenas de documentários que entretanto foram surgindo sobre o tema “alimentação versus ambiente” têm inspirado muitos outros trabalhos de investigação. Mas a contestação aos processos de produção em larga escala deste ramo da indústria é pífia e ganha expressão de forma demasiado lenta. Claro que há avanços, e isso é positivo A prová-lo estão o aparecimento de produtos certificados de acordo com a pegada ecológica, a procura de alimentos de produção biológica e o crescente número de pessoas que seguem dietas alternativas.
Para chegarem ao prato, todos os alimentos implicam gastos de energia, consumida na produção e transporte. Quanto mais distante é a proveniência, maior a pegada ecológica. Um kiwi da Nova Zelândia chega a Portugal com um ónus de 1,84kg de CO2 por quilo, ou seja, cada fruto deixa uma pegada muito superior ao próprio peso, segundo dados da portuguesa Sair da Casca, consultora reconhecida pela Carbon Trust, organismo britânico de certificação de alimentos ecologicamente sustentáveis. Se tivermos isto em conta, julgo que é mais fácil tomar decisões racionais na hora de ir ao supermercado, certo?
Nada, porém, se compara aos danos ambientais causados pela carne de vaca. Por cada quilo consumido são emitidos 22,3 Kg de CO2, segundo a mesma consultora. Não admira, por isso, que nos estudos comparativos sobre impactos ambientais da alimentação humana a bovinicultura ultrapasse todos os outros. E deixa rasto por terra, água e ar.
A pecuária, assegura a FAO, é a principal responsável pela desflorestação mundial. Em 23 das 33 regiões identificadas como em risco de perda de biodiversidade, a produção animal é apontada como o factor que mais contribuiu para tal. Soma-se ainda a contaminação dos solos causada por pesticidas, fertilizantes, antibióticos e resíduos animais.
Mas não são apenas os solos que sofrem com a agropecuária. A Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos revelou que cerca de metade dos poços e todos os ribeiros do país estão contaminados por poluentes oriundos da pecuária. E também denunciou os elevados consumos destas explorações: apenas para irrigação de pastagens a agropecuária gasta 8% da água doce do planeta.
A par da desflorestação e da contaminação das águas e solos, o agravamento do efeito estufa na atmosfera fecha o círculo que compreende os três elementos: terra, água e ar. Sabe-se que, dos excrementos e da flatulência do gado bovino, liberta-se metano, o principal responsável pelo efeito estufa, já que uma tonelada deste gás contribui tanto para o aquecimento do planeta quanto 23 toneladas de CO2. Uma vaca leiteira produz cerca de 75 Kg/ano de metano, o equivalente a mais de 1,5 toneladas de CO2, o que, multiplicado por milhões de animais, atinge cifras impressionantes. Mas o dado mais incómodo é este: as concentrações atmosféricas de metano cresceram 150% ao longo dos últimos 250 anos, enquanto as concentrações de CO2 ficaram nos 30%. Tal deveu-se à subida exponencial do consumo de lacticínios e carne de vaca.
Termina aqui esta espiral destrutiva? Não. A estes valores somam-se os custos com a saúde que decorrem de uma alimentação demasiado rica em proteína e gordura animal. Aprendi com o meu querido amigo e mentor nas questões da alimentação, Francisco Varatojo, que fundou o Instituto Macrobiótico de Portugal, que a degeneração do planeta e a nossa degenerescência biológica são consequências uma da outra. A alimentação errada está a destruir o planeta, e também está a destruir-nos. A obesidade, a diabetes, as doenças cardiovasculares, os problemas renais, o cancro e até as doenças do foro neurológico, como Parkinson e Alzeihmer, têm uma forte correlação com má alimentação. Como explicava recorrentemente Francisco Varatojo, vez após vez, até não ter voz, no início do século o cancro era uma doença de ricos, porque só eles comiam carne. Com o desenvolvimento, estas doenças democratizaram-se, e agora é delas que mais se morre.
Apesar do paradoxo entre desenvolvimento e saúde pública, tenho medo que tenhamos chegado a um ponto de não retorno. Sinto as pessoas muito acomodadas. Os governos sabem que teriam de tomar medidas radicais para que algo de significativo mudasse. Falta-lhes coragem. Por outro lado, as empresas querem continuar a facturar. Mas se não mudarmos teremos cada vez mais gastos com a saúde e precisaremos, talvez, de outro planeta para viver.
Os ecossistemas não foram criados para o homem. O homem é apenas um dos elementos do ecossistema. Esquecemo-nos de que a economia vive da componente ambiental. Se não tivermos solos, água, recursos animais, não temos ambiente para funcionar como base da economia, nem para viver com saúde. Foi o facto de desrespeitarmos esta ordem natural que nos levou à situação actual, incluindo muito provavelmente a pandemia que estamos a atravessar.
Pergunta desafiadora: qual é o espaço de manobra que um governo tem para fazer este discurso? Muito pouco. Sempre que eu falo das minhas opções alimentares em público ou partilho notícias sobre este tema, recebo mensagens a acusarem-me de querer voltar ao tempo das cavernas.
Mas não tenhamos dúvidas: a transição para um sistema alimentar sustentável e saudável não se faz sem os governos. Eles têm de sensibilizar as pessoas através de campanhas que promovam uma alimentação mais saudável, e criar condições para mudanças de hábitos de consumo. Eu sigo uma alimentação racional, sem excesso de proteínas (como peixe no máximo uma vez por semana) e baseada em produtos verdes, ou seja, produtos locais que não têm associados grandes gastos de energia com meios de transporte e produtos da estação, que não sejam cultivados em estufa nem conservados em frigoríficos. Aos poucos, tenho tentado também optar por produtos biológicos. Mas faço-o porque me empenho, já que para ter acesso a estes alimentos tenho de me esforçar. E não devia ser assim. Consumidores e planeta agradeciam outra estratégia de educação alimentar.