A luta contra a corrupção em Portugal tem sido um objectivo declarado dos poderes públicos (cumprido com duvidoso compromisso e pouca eficácia), e tem mobilizado organizações e movimentos da sociedade civil dedicados à defesa dos direitos sociais. Entre as iniciativas mais recentes destaca-se a All4Integrity, uma associação apartidária da sociedade civil, fundada em 2020 por André Correia de Almeida, professor da School of International and Public Affairs, da Universidade de Columbia. É a única associação global, de origem portuguesa, criada com o objectivo de libertar Portugal da corrupção, promovendo uma cultura de integridade e transparência.
A associação tem sido uma incubadora de iniciativas para a prevenção e combate à corrupção, e para promover a integridade aos níveis individual e institucional. Nas actividades da associação salienta-se o Prémio Tágides, destinado a reconhecer os trabalhos, as iniciativas e as pessoas que se distinguem na luta contra a corrupção e na promoção de uma cultura de integridade, e o Programa RedEscolas Anticorrupção cujo propósito é difundir a literacia anti-corrupção e disseminar uma cultura de integridade entre os mais jovens.
O que melhor distingue a missão da All4Integrity é apoiar a luta contra a corrupção na promoção dos comportamentos íntegros e na criação de culturas de integridade e transparência, nas instituições públicas e privadas. Esta missão coloca o desafio de se pensar as bases conceptuais de uma estratégia para promover a integridade, numa sociedade que se tem ocupado, compreensivelmente, com o objectivo mais imediato de denunciar e reprimir a corrupção.
Numa avaliação rápida, a luta contra a corrupção tem utilizado três estratégias, cada uma das quais procurando accionar motivações distintas para eliminar os comportamentos corruptos.
A primeira estratégia consiste em estudar e avaliar a incidência e as consequências das diferentes formas de corrupção, investigar a sua ocorrência, difundir a informação e fazer a denúncia pública dos casos. Esta linha é desenvolvida por académicos, centros de estudos, associações cívicas e sobretudo pelo jornalismo de investigação. A abordagem investigativa visa combater o fenómeno aprofundando o seu conhecimento, alertando para a frequência e formas que pode revestir, para a gravidade dos impactos sociais e para a necessidade de uma acção firme das autoridades no seu controlo. Tem um papel relevante no combate à corrupção através do estudo do fenómeno, do alerta social para a sua extensão e gravidade, e tem efeito dissuasivo pela exposição pública dos ilícios e denúncia às autoridades.
A segunda estratégia de combate à corrupção apoia-se na punição dos actos ilícitos. O principal objectivo é controlar o fenómeno apurando a responsabilidade dos indiciados, julgando-os e aplicando o quadro penal. A abordagem punitiva procura desencorajar os actos de corrupção com base num pressuposto de racionalidade: o crime é praticado quando os ganhos são superiores aos custos estimados. A punição severa dos culpados aumentaria a avaliação dos custos marginais esperados por estes em futuras infracções, e por outros potenciais infractores, desencorajando as práticas corruptas. Nesta estratégia, o medo da punição é o principal motivo dissuasor.
A terceira estratégia tem por objectivo prevenir e dissuadir a corrupção regulando os comportamentos. A estratégia regulatória cria um conjunto de instrumentos e processos que visam enquadrar as práticas das organizações em modelos de acção destinados a evitar, monitorizar e denunciar os comportamentos corruptos. A regulação é imposta pela autoridade do estado, mas também tem sido assumida por iniciativa própria. A motivação para não praticar os actos de corrupção está em evitar as penalizações previstas nas leis e regulamentos, bem como os danos materiais e reputacionais que lhe estão associados.
As três abordagens complementam-se, mas todas têm fragilidades. A estratégia da denúncia pode ser pouco eficaz porque a maior parte da investigação especializada não é acessível ao grande público. Por outro lado, a investigação jornalística nem sempre tem os meios para fazer um trabalho credível e muitos casos trazidos a público acabam por não ser devidamente investigados e levados a juízo.
A estratégia baseada na punição parte de um princípio que a investigação não confirma: a ideia de que os actos de corrupção são o resultado de estratégias racionais de tomada de decisão. Sabemos hoje que as quebras de ética têm determinantes muitos complexas e que a racionalidade humana é limitada. Muitas decisões são determinadas por heurísticas que podem levar as necessidades e impulsos mais imediatos a determinar os juízos e os comportamentos. Sabemos também que mesmo as pessoas mais firmes nos seus princípios podem praticar comportamentos não-éticos, desenvolvendo mecanismos de racionalização dos comportamentos corruptos que as “anestesiam” aos sentimentos de culpa e lhes permitem manter o conceito de si próprias como pessoas honestas.
A estratégia regulatória parece ser a mais adequada para controlar o fenómeno na medida em que co-responsabiliza as organizações e os seus responsáveis na prevenção e controlo da corrupção. Contudo, a abordagem regulatória pode ser perigosa porque encoraja a ideia de que desde que se cumpra a lei e os regulamentos, está a ter-se um comportamento ético, e de que tudo o que as normas não proíbem pode ser feito.
Estes equívocos levaram alguns autores a defenderem que a estratégia regulatória tem sido o principal obstáculo a uma estratégia de promoção da integridade. De facto, a lei e os regulamentos definem o limite entre o que pode ou não pode ser feito, mas não indicam as escolhas que se devem assumir nas muitas situações do dia-a-dia que a lei não prevê e em muitas outras que, sendo possíveis à luz da lei, são eticamente condenáveis. Não cumprir o que se prometeu, não assumir a responsabilidade por um erro, desculpar-se com os outros, ser desleal com os colegas ou encobrir os problemas aos superiores, não é condenado por lei, mas são comportamentos que revelam falta de integridade. É, pois, importante evitar duas ideias muito difundidas: pensar que uma pessoa íntegra é aquela que não pratica actos de corrupção e que uma empresa onde não há corrupção tem uma cultura de integridade.
Dadas as limitações das três estratégias mais usadas, importa desenvolver uma estratégia complementar de combate à corrupção, que se afirme pela positiva e substitua o controlo externo do comportamento, usando o medo (da exposição pública, das penas da justiça ou das consequências das infracções às normas), pelo autocontrolo apoiado numa inteligência moral crítica e informada. É preciso abandonar a velha crença de que as pessoas só fazem o que devem quando são obrigadas, pela ideia de que as pessoas são capazes de fazer o que devem porque, esclarecidamente, acreditam que estão a fazer o que é correcto.
É esta a missão que cabe à promoção da integridade. Contribuir para a erradicação da corrupção desenvolvendo, nos decisores, a inteligência moral crítica, para saberem analisar e decidir os dilemas éticos, serem uma referência para os outros e serem agentes na construção de culturas de integridade.
Uma estratégia de promoção da integridade deve apoiar-se nos elementos seguintes.
1.º Persuadir as organizações públicas e privadas a colocarem a promoção de uma cultura de integridade nos seus objectivos estratégicos e a definirem um conjunto de valores que orientem a sua acção. Apoiar a criação de mecanismos internos de prevenção, monitorização e denúncia dos actos de corrupção, de acordo com aquilo que a lei já prevê, mas cuja importância precisa ser internamente valorizada.
2.º Estimular a introdução, nos planos de formação das organizações públicas e privadas, módulos sobre a promoção da integridade e o combate à corrupção, com o objectivo de desenvolver a literacia nestas áreas, à semelhante do que muitas organizações já fazem com os temas da segurança, da qualidade e da gestão ambiental.
3.º Ter em especial atenção as pessoas com funções de liderança, fornecendo-lhes formação específica de apoio às tomadas de decisão. Uma vez que os actos de corrupção têm como ponto de partida decisões não éticas, e a integridade se manifesta na qualidade ética das decisões e das acções, o apoio ao processo de tomada de decisão tem particular relevância. Concretamente, é preciso desenvolver o exercício da inteligência moral crítica para avaliar as implicações éticas das decisões, a ponderação das alternativas e dos seus impactos nos parceiros, no ambiente e na sociedade em geral, e para solucionar os dilemas éticos que frequentemente se colocam aos decisores.
A inteligência moral é uma função que pode e deve ser desenvolvida através de técnicas estruturadas de auto-questionamento e debate, que ampliam a capacidade analítica e crítica, facilitando a distinção entre o que certo e o que é errado fazer-se, e evitando as decisões impulsivas que abrem a porta às satisfações de necessidades imediatas.
4.º Uma estratégia para a promoção da integridade tem de apoiar-se na ideia de que a integridade envolve dois planos que não podem ser separados. No plano interpessoal, ou plano da acção, a integridade inclui os os comportamentos que mostramos nas relações com os outros, que podem ser percebidos e avaliados por um observador externo. Ao nível intrapessoal, inclui a constelação de crenças, atitudes e valores que também designamos por “carácter individual”, só directamente acessível à consciência do próprio e ao observador sob a forma de traços inferidos.
A corrente de investigação da “integridade comportamental” que nos últimos 20 anos desenvolveu um extenso corpo de estudos, contribuiu para separar os dois planos, reduzindo o conceito de integridade à coerência entre palavras e acções, entre o que se promete e o que se cumpre. É uma visão redutora que tem, no entanto, a vantagem de operacionalizar o conceito de integridade, permitir o estudo da correlação entre variáveis e avaliar o impacto dos níveis de integridade em aspectos como a satisfação no trabalho, a confiança nas lideranças e na organização, a retenção de talentos, a produtividade e os comportamentos de cidadania organizacional.
Contudo, ao isolarmos os comportamentos das suas determinantes intrapessoais, e ao considerarmos que a ética ou a integridade se circunscrevem à acção, estamos a perder a capacidade de explicar o que observamos e de conseguir a mudança a partir do autocontrolo dos comportamentos. Se nos centrarmos apenas na ética da acção a mudança dos comportamentos só é possível pelo controlo externo, o mesmo é dizer, os comportamentos são íntegros desde que se submetam às normas que os regulam. Ora aquilo que distingue a integridade é não ser apenas conformidade mas, mais do que isso, exigir autorregulação: fazer o que deve ser feito, não porque a acção é condicionada por normas, mas porque é aquilo que é certo fazer-se. Os comportamentos íntegros obedecem a uma regulação interna caso contrário perderiam sua autenticidade, consistência e espontaneidade. A regulação externa caracteriza os comportamentos conformes e, como vimos, muitos comportamentos conformes às normas podem estar à margem da ética. A própra lei define mínimos éticos e, mesmo assim, não faltam casos em que preceitos legais são de ética duvidosa.
Não vejo, pois, como se possa reforçar o controlo interno da acção se ignorarmos as variáveis internas e externas que a determinam, incluindo as atitudes, valores e outros mecanismos psicológicos, operando a diversos níveis de consciência, que condicionam o tratamento da informação, as tomadas de decisão e as estratégias de acção. Como dizia John Dewey, “a chave para uma teoria correcta da moralidade é o reconhecimento da unidade essencial do self com os seus actos”.
Em resumo, desligar a acção dos valores e de outras determinantes psicológicas da acção, com base na ideia de que o que importa, para combater a corrupção, é que as pessoas cumpram regras e leis aplicadas a todos, tem duas consequências: estamos a reduzir a promoção da integridade à conformidade normativa, a substituir a automotivação pelo controlo externo, e a privar as pessoas dos meios para tomarem as decisões correctas nas situações em que as normas são omissas. Em suma, estamos a impedir que pratiquem actos de corrupção mas não estamos a motivá-las a agir com integridade.
5.º A promoção da integridade, com base na ideia de autorregulação, deve ser feita pelo desenvolvimento da inteligência moral crítica e não pela referência a sistemas de valores individuais, nem pelo apelo à consciência moral de cada um ou pela referência aos padrões de comportamento socialmente aceites. A prática da integridade não deve apoiar-se no relativismo da moral individual nem no relativismo cultural que geralmente se designa de “moral social” ou “moral partilhada”.
Os valores pessoais ou o que designamos de ética individual não podem ser uma referência no combate à corrupção nem na promoção da integridade. Não porque haja, como popularmente se diz, “pessoas sem valores”. Todas as pessoas têm valores enquanto normas que orientam a acção. A questão é quais são esses valores. A diversidade dos valores individuais e a forma como cada um os defende como parte da sua identidade pessoal, impedem que se tome como referência para a acção a bondade das consciências e os valores que cada um defende. A submissão aos valores individuais levaria ao subjectivismo e ao relativismo ético.
Substituir a referência aos valores individuais pela “ética colectiva”, isto é, por regras aplicáveis a todos os comportamentos individuais, ou ao consenso social partilhado sobre como se deve agir, também não é a solução. Seria substituir o relativismo dos sistemas de valores individuais pelo relativismo social dos consensos culturais ou grupais. Estes consensos são tanto ou mais perigosos do que os valores individuais precisamente porque são impostos pela pressão social e, em muitos casos, pela força da lei. Muitos consensos sociais são contrários a princípios éticos de justiça, igualdade e liberdade, e existem numerosas práticas culturais consensualizadas que não são éticas. O regime teocrático do Irão, sob a lei da sharia, e a excisão feminina em algumas comunidades africanas, são exemplos de sistemas normativos e de práticas que, embora consensualizadas pela maioria do grupo social, não podem ser consideradas éticas. Em Portugal, ainda há poucas décadas havia práticas de nepotismo que eram socialmente aprovadas e até podia ser censurado quem não tivesse privilegiado um familiar estando em posição de poder para o fazer.
6.º Rejeitando os relativismos individual e cultural, defendemos o uso da razão como instrumento de análise crítica e de tomada de decisão, para enfrentar os desafios do que deve ser o comportamento em cada caso em que tenhamos que distinguir entre o que é certo ou é errado. A inteligência moral crítica pode definir-se como a capacidade de compreender, julgar, decidir e planear a acção, de maneira eticamente responsável, isto é, avaliando as consequências morais dos comportamentos nos outros e na sociedade, e discernindo o está certo e o que está errado apelando a critérios de universalidade.
A inteligência moral usa as capacidades racionais do homem mas não se esgota nos limites do pensamento lógico. Não é, por isso, uma competência estritamente cognitiva. Inclui também a capacidade empática (o que pensam e sentem os que são afectados pelo meu comportamento?), a compreensão das consequências das acções nos interesses legítimos dos outros, da comunidade e do ambiente (quais são os impactos da minha decisão?), e na sustentabilidade da sociedade humana (o que aconteceria ao mundo, se todas as pessoas fizessem o mesmo juízo ou tivessem o mesmo comportamento?).
O desenvolvimento da inteligência moral crítica é um processo contínuo que pode ser acelerado através da reflexão, da formação, do debate de ideias e da análise de casos. Que crenças influenciam as minhas acções? Que necessidades dominam o meu comportamento? Quais são as principais contradições entre o que penso e a maneira como ajo? A autoconsciência é um passo fundamental para desenvolver a inteligência moral.
A exposição a pontos de vista diferentes e o debate com pessoas que defendem soluções distintas é também importante para desenvolver a empatia e a capacidade de análise dos problemas de diversos pontos de vista. Uma abordagem prática consiste em sujeitar previamente as decisões a um questionamento estruturado e sistemático, de modo a testar a sua validade ética. Esta técnica pode ser aplicada individualmente ou em grupo e é desenvolvida com recurso à análise de casos.
O combate à corrupção pela via da promoção da integridade e da transparência, nos comportamentos individuais e nas práticas das organizações, não exclui as outras estratégias de acção, mas complementa-as. As estratégias investigativa, penal e regulatória têm especial relevância sobretudo quando a corrupção está profundamente enraizada nas práticas culturais, como acontece em Portugal, onde uma cultura de elevada distância ao poder, colectivista e avessa à incerteza, que ainda está presente em largos estratos da sociedade, favorece os actos de corrupção.
Mas se é certo que a situação que hoje vivemos exige uma resposta firme com estratégias de controlo externo e de punição dos ilícitos, não é menos verdade que as mudanças culturais e de mentalidades são necessárias, exigindo um investimento urgente e continuado na literacia da integridade e da transparência. O controlo externo contribui para limitar a ocorrência dos comportamentos corruptos mas deve ser complementado por uma mudança nos mecanismos individuais e nos traços culturais que estão na sua origem. A repressão tem que ser complementada pela mudança interna, que passa pelo desenvolvimento da inteligência moral e da capacidade de autocontrolo. O que verdadeiramente distingue a integridade não é a conformidade externa, mas ser uma expressão espontânea e autêntica do eu.
Luís Caeiro é Professor da Catolica Lisbon School of Business and Economics e Membro do Conselho Consultivo da Academia All4Integrity.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.