A informação internacional de que dispomos é cada vez maior e mais rápida, mas parece que construímos uma nova distância em relação ao que se passa pelo mundo. Apesar disso, a acessível conexão que nos aproxima implica também algumas responsabilidades. A facilidade comunicativa pode e deve ser usada como um reforço da solidariedade e justiça entre os povos, principalmente quando essa comunicação está revestida de poder.
Logo após o ataque de 7 de outubro deste ano, um dia de mortes, raptos e agressões injustificáveis perpetradas pelo Hamas, falou-se abertamente por todo o mundo sobre “o direito à defesa de Israel”. Passadas poucas semanas, tinham morrido milhares de civis palestinianos em Gaza, entre eles muitas crianças e o número aumenta diariamente. Desde a manobra de limpeza étnica sionista conhecida como Nakba em 1948, durante a consequente ocupação levada a cabo durante décadas e o regime de apartheid que o Estado de Israel tem vindo a praticar em Gaza, repleto de atrocidades e dias trágicos, foram demasiado poucas as vezes e os locais em que se ouviu falar sobre “o direito à defesa da Palestina”.
A criação de grupos violentos organizados com ódio a Israel deu-se através das várias gerações de palestinianos a crescer durante uma opressão e colonização violenta. Garantidamente, alguns e algumas de nós fariam parte desses grupos se tivéssemos crescido neste contexto. Mas o Hamas não representa os palestinianos, pois muitos não se identificam com a sua violência e pretendem apenas a sua independência e liberdade. É completamente absurdo e de uma injustiça atroz colocar no mesmo saco toda a causa palestiniana e os atos violentos do Hamas, mas uma boa parte dos governos e meios de comunicação oficiais contribuem largamente para a manutenção dessa mentira. No entanto, o sofrimento que está a ser infligido vai, certamente, encaminhar mais gente para posições extremistas.
O Presidente da República portuguesa conseguiu ter publicamente uma atitude constrangedora para qualquer cidadão que rejeite a chacina a ser executada pela extrema-direita israelita. A acusação feita ao embaixador da Palestina em Portugal foi a pior afronta que Marcelo podia ter feito à Fatah, a maior fração da Organização para a Libertação da Palestina criada por Yasser Arafat, que precisa de um novo apoio internacional e discorda assumidamente das ações do Hamas. A tentativa de apaziguar as reações das suas declarações (para tentar ficar bem na fotografia), durante a sua presença forçada numa manifestação de apoio à Palestina, com um discurso lastimável e pouco claro, confirmou, dessa forma, a total ausência de empatia que teve perante este assunto, tal como referiu Nabil Abuznaid.
Aqueles que condenam a atitude do estado de Israel e defendem a independência da Palestina são, por muitos dos defensores acérrimos dos sagrados valores ocidentais, quase automaticamente apelidados de antissemitas. No entanto, apesar de perigoso e ainda existente, o antissemitismo não se coaduna com a forte rejeição de ações ultraviolentas a civis e com o reconhecimento à autonomia de um povo. Em contrapartida, a islamofobia explica ainda uma parte considerável desta situação.
No que diz respeito à tentativa de resgatar os reféns de 7 de Outubro, pelo nível de destruição infligido a escolas, hospitais, campos de refugiados e instalações de organizações humanitárias, disparar indiscriminadamente com a justificação de estarem membros do Hamas nesses locais, independentemente das restantes pessoas presentes, não pode ser considerada uma tática de salvamento. Muitos cidadãos manifestam-se em Israel, porque reconhecem que a única hipótese é a negociação de reféns e sabem que, com este nível de violência, dificilmente verão novamente os seus familiares e amigos raptados a 7 de Outubro. Milhares de manifestantes judeus estão inseridos nas marchas de solidariedade com a Palestina, demonstrada nas ruas por milhões de pessoas de todas as nacionalidades e crenças, um pouco em todo o mundo.
O que se está a passar em Gaza só pode ser considerado uma atrocidade humanitária de dimensões assustadoras, uma matança de inocentes em massa, com a conivência e apoio dos representantes governamentais dos EUA e da maioria dos representantes Europeus, e que só poderão ficar marcados como cúmplices (com algumas exceções, como os valentes do partido irlandês Sinn Féin, partidos de esquerda de alguns países e pedidos suaves de cessar-fogo dos Verdes e de Macron, mas convém relembrar a proibição francesa de manifestações pró-Palestina, com a desculpa de poder despertar sentimentos antissemitas). A posição e silêncio da União Europeia mancha cruelmente o futuro que estes países, como grupo supostamente defensor dos direitos humanos, podem vir a ter. E afasta também a humanidade de cada um dos países que desvia o olhar.
Já existem bastantes pedidos declarados de cessar-fogo e alguns cortes diplomáticos com Israel (como a Bolívia e África do Sul), mas ainda não representam a urgência de uma forte e digna oposição mundial à violência que se pratica em Gaza. Uma forte e digna oposição mundial à óbvia pretensão do estado de Israel de tentar branquear a longa ocupação ilegítima e castradora da Palestina com o 7 de Outubro, como se iniciasse agora uma nova história. Uma forte e digna oposição mundial a décadas de um feroz apartheid, de manutenção de uma prisão a céu aberto, do controlo total sobre pessoas, bens e medicamentos que entram e saem de Gaza, da perpetuação da pobreza extrema ao povo palestiniano, de ilegalidades e atrocidades reconhecidas internacionalmente mas constantemente ignoradas, e dos abomináveis crimes de guerra que agora se acrescentam.
O discurso de António Guterres foi um dos que revelou o mínimo de decência perante o que se está a passar. Mas esse mínimo, por todo o contexto passivo perante a morte de milhares de civis num curto espaço de tempo, pareceu-nos o máximo. A frieza e jogadas políticas dos EUA e União Europeia estão lançadas a um tal nível, que parece escapar-nos a urgência e gravidade do massacre de um povo em 2023 e normalizamos, assim, tudo isto. Apesar de começarem a surgir, são ainda poucos os discursos assertivos que condenem duramente o governo do estado de Israel, que exijam formalmente um cessar-fogo imediato e um façam corte de relações diplomáticas, que seria o mínimo aceitável. O reconhecimento internacional da independência da Palestina tem agora uma complexidade acrescida, mas aumentou também, ainda mais, a pertinência que sempre teve.
O número de civis mortos e feridos não tem comparação com nada que se tenha conhecimento nos últimos anos e tudo é presenciado através das nossas televisões, computadores e telemóveis. É um genocídio como um reality show, perante o qual, entre as vozes que chegariam mais longe, são ainda poucas as que se manifestam. A maioria opta por pôr o volume mais baixo, ignorando gritos de socorro das Nações Unidas, de organizações humanitárias e de pessoas das mais variadas áreas, a correrem risco de vida no terreno a cada segundo que passa.
Os interesses económicos e a geopolítica conseguem dominar tudo. As armas e as guerras ainda são dos negócios mais rentáveis e esta “guerra” não será exceção a esse princípio, assim como a disputa pelo poder económico da aliança EUA/Israel. Neste sentido, Netanyahu começa a abrir o jogo que já se mostrava óbvio, quando assume que o objetivo é ficar com um “controlo de segurança total” na faixa de Gaza, para que possa ter total liberdade de movimentos em todo o território. Entretanto, os EUA garantem que não haja interferências externas e dão o seu apoio incondicional a uma das manobras políticas mais sujas de tempos recentes, mas que encaixam que nem uma luva no seu sinistro currículo.
Existe a máxima urgência em pressionar todas as organizações influentes, governos e partidos políticos a exigir um cessar-fogo imediato, a condenação do governo de Israel e a intermediação internacional para a criação dum estado palestiniano independente. Isto para que não seja cada vez mais irrespirável viver num mundo politicamente tão calculista, hipócrita e de uma covardia apática de tal forma enfiada no seu umbigo, que ignora o extermínio de um povo e contribui, com o seu silêncio, para a sua legitimação. Espero que alguma da informação que consta neste artigo esteja já desatualizada na altura da sua publicação e que, entretanto, se consiga tornar menos obscuro o futuro trágico que se anuncia.