Já se sabe que a política partidária se rala cada vez menos com resultados para o cidadão e está quase absolutamente focada em, à falta de capacidades próprias, denegrir o trabalho dos que se sentam do outro lado de uma barricada que se ergue cada vez mais alta. Mas há dias em que se fica mesmo de queixo caído.
Apesar de o PS de Pedro Nuno Santos, fazendo esquecer que governou nos últimos quase nove anos, reclamar diariamente que o governo da AD, em três meses de governação, não conseguiu ainda encontrar solução para os problemas do país, hoje foi um desses dias em que não se consegue evitar o espanto com a cara de pau.
Não há expressão que melhor ilustre a lisura com que o PS reclama que o SNS está num ponto de "caos significativo", "francamente pior" do que o deixou, dois anos após a morte de uma grávida — transferida de Santa Maria, onde o caos instalado não permitia o seu internamento — ter motivado a demissão de Marta Temido (outros dois bebés e outra mulher grávida já tinham morrido nesse verão).
Diz hoje o PS que "os constantes encerramentos dos serviços de ginecologia e obstetrícia e a instabilidade generalizada no SNS são a prova de que o Plano de Emergência e Transformação na Saúde anunciado pelo governo da AD está a falhar". Di-lo sobre um governo de três meses, um ano após o governo socialista ter exonerado a direção de obstetrícia do Santa Maria (por razões políticas, juravam então sindicatos e médicos), numa altura em que 75% dos obstetras estavam de férias e os médicos recusavam fazer horas extra além das 150 previstas por lei.
Afirma-o o PS, sem sombra de memória de mais de uma dúzia de greves parciais e de duas greves nacionais de participação massiva no verão de 2023, com o então primeiro-ministro António Costa a rejeitar subir salários ao pessoal da saúde porque, sendo "presidente do sindicato dos portugueses", essa não era uma "prioridade do governo".
Repete PS que nunca se viu tamanha desordem na saúde, sem lembrar as urgências encerradas por todo o país nos últimos verões — basta uma simples pesquisa para listar encerramentos e condicionamentos em hospitais públicos durante os verões de 2022 e 2023 (Garcia de Horta, Santa Maria, Barreiro, Setúbal, Braga...), encarados pelos médicos como "o lamentável resultado da incapacidade do governo (PS) em tornar a carreira médica atrativa no SNS" —, obrigando as grávidas a chegar a percorrer mais de 100 km para serem atendidas.
"Mais um verão preocupante, depois do caos de 2022 nas urgências de Ginecologia e Obstetrícia", lamentavam os médicos em 2023, caminhando para uma greve de que o PS aparentemente não guarda memória, motivada pelo facto de o SNS não poder "esperar mais por uma resposta" e tendo em conta "a proposta absolutamente inaceitável" em que o governo socialista propunha resolver o caos na saúde duplicando o número de horas extraordinárias permitido por lei para mais de 300 horas, o equivalente a quatro meses adicionais de trabalho por ano.
Sem pestanejar, Mariana Vieira da Silva culpa hoje a governação de Montenegro pelo "afastamento de pessoas" e pela "instabilidade" gerada no SNS, preferindo omitir os 15 meses de inatividade do CEO que o seu governo nomeou mas a quem levou um ano a capacitar com os devidos estatutos. Preferindo esquecer os apelos dos médicos que, em 2022 e em 2023, apelavam até ao Presidente da República para que interviesse contra a "falta de investimento público" que já deixava quase 2 milhões de portugueses sem médico de família e atrasos inenarráveis nas consultas hospitalares e cirurgias. Fala a ex-governante em "afastamento de dirigentes reconhecidos do SNS", optando por não recordar as demissões em bloco contra as políticas que definia ao lado de Costa, no seu governo socialista, dos dirigentes dos hospitais Garcia de Horta, de Ponta Delgada, de Santarém, do Algarve, do Oeste, Santa Maria, Pulido Valente...
Mas Mariana Vieira da Silva e o PS preferem recordar as boas notícias de então, claro. Porque no meio do caos absoluto a que o SNS foi votado pela governação socialista da última quase década, podia não haver médicos de família, mas os tratamentos termais voltaram a ter apoio do Estado. E era preciso muita sorte para encontrar na lotaria uma urgência aberta, mas ao menos o governo dava ordens para reforçar a resposta do SNS nas cirurgias de mudança de sexo. E podia não haver clínicos disponíveis para aceitar trabalhar muito mais horas sem remuneração que o compensasse, mas ia-se buscar reforços a Cuba e o governo PS até se oferecia para pagar mais 20% aos médicos que aceitassem ficar única e exclusivamente ao serviço do Estado, fazendo até 350 horas extra por ano e sendo obrigados a servir num raio de 30 km da sua colocação.
Nesses tempos, sim, o que mexia com o povo merecia o olhar atento do governo socialista. E até os médicos sabiam com que podiam contar. Não era como agora, que para garantir que as pessoas têm atendimento atempado, quando o público não pode responder, são encaminhadas para o privado sem custos, contando-se com toda a capacidade instalada para responder às necessidades das pessoas. Mas o PS vê nisso um cheque passado ao privado, não a tentativa de resolver, por todos os meios disponíveis, os problemas dos cidadãos.
E para rematar, Mariana recusa-se a "aceitar lições" do governo da AD. Digam lá que não é notável a capacidade narrativa dos socialistas...
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