No mesmo dia em que saíram à rua milhares de pessoas espalhadas pelo país inteiro, manifestando-se perante o assalto à dignidade de ter uma casa, eu saí à rua para casar dois amigos. No meio da alegria que é presenciar a celebração do amor, pensei ‘que sorte que eles têm por, finalmente, já terem uma casa’. Que sorte?
É, no mínimo, perverso julgar que ser possível arrendar uma casa na cidade onde se escolheu morar é uma espécie de bingo. E há que gritar bem alto quando acontece, para aliviar também a dor de ter de hipotecar a alma para pagar as cauções e as rendas adiantadas. Não me vou pronunciar sobre comprar e sobre as taxas de juro porque é uma realidade longínqua para quem está na base da pirâmide. Estamos no plano elementar de ter um lugar para viver, não no de escolher dar entrada para uma casa para a vida, muito menos no de fazer um grande investimento. Todos os planos são válidos, da mesma forma que todas as plataformas da pirâmide de Maslow são válidas, mas não se atingem os planos de cima sem satisfazer os de baixo, onde parece que se situa uma camada considerável da população portuguesa.
Há famílias que trabalham a viver em tendas. Há, pelo menos, um professor a viver num carro. Há jovens que desistem do ensino superior por não terem um quarto. Há casais divorciados a dormir na mesma cama. Há jovens a não sair de casa dos pais. Há pais a voltarem para casa dos pais. Não quero que os ricos morram, preferia antes que olhassem para quem lhes permite serem tão ricos e que fizessem parte da construção de vidas dignas como provavelmente serão as suas, sem vaidade ou glória pelo ato. O governo é determinante, se as políticas forem eficazes, mas não basta. As pessoas têm de saber olhar umas para as outras e, neste caso específico como em todos, a responsabilidade pesa mais sobre quem tem e pode mais.
Enquanto jovem adulta, num espaço de três anos, a começar na pandemia, já passei por voltar a casa da mãe por não ter dinheiro para pagar sequer um quarto, já arrendei um T1 por 500€ porque a senhoria era uma pessoa que era mesmo uma pessoa, com tudo de bom que isso implica, já pedi ao meu pai que pedisse um empréstimo em meu nome para pagar 6 meses de renda porque os meus ordenados não chegavam neste período, já mudei de casa por precisar de um espaço maior e por isso tive de sair de Lisboa e, atualmente, subarrendo a casa porque conto com a sub-renda como uma parcela do meu ordenado. É um muro de lamentações, onde não há lamentações, há factos. No meio da precariedade do setor artístico, consigo ser senhoria de uma casa que não é minha, com o consentimento de todas as partes envolvidas. Estranho, não é? Talvez perverso, mas não queria usar a mesma palavra.
Tenho três trabalhos fixos, outros tantos avulsos, e faço dança contemporânea avançada para sub-viver. Se forem ver o espetáculo Terra Cobre, do João Pais Filipe e do Marco da Silva Ferreira, integrado na BoCA, vão perceber exatamente o que estou a dizer. É certo que não sou uma motorista de TVDE a dormir na mala do seu próprio carro, nem moro na rua, nem fui despejada por nenhum senhorio, não sou imigrante discriminada, nem lido com a dificuldade de pertencer à comunidade LGBTQIA+. Sempre dá para encontrar o privilégio da classe. E se eu sou agradecida por ter família ascendente, que me salva. A família descendente tem quatro patas, abana a cauda, não precisa de roupa, nem de cultura, nem de material escolar. Por enquanto, é o que dá.
Comecei este artigo porque queria falar de casa e de casar, não queria falar sobre mim. Queria chegar à conclusão que ter casa é um direito para que casar não volte a ser um dever e uma salvação, apenas uma escolha. Mas pediu-me a lucidez que erguesse o cartaz que não pude erguer no passado sábado. Somos mais se formos muitos, sem vergonha de tirar a máscara do país que também somos. Temos mérito e estamos precários. Temos coragem e estamos exaustos. Mantemos uma geração à rasca que não perdeu o foco de sonhar para que a obra nasça. Somos o farol, não somos as circunstâncias. E, no meio da escuridão capitalista, a humanidade brilhará. Eu acredito.
** Rita Dias é cantora, escritora e atriz. Lançou dois discos, participou no Festival da Canção e editou um livro de poesia em Portugal e no Brasil. Prepara-se para lançar novo disco e novo livro.