António Guterres apresentou-se aos participantes da 79º Assembleia-Geral das Nações Unidas convencido de duas verdades fundamentais. “Em primeiro lugar, o estado do nosso mundo é insustentável. Não podemos continuar assim. E, em segundo lugar, os desafios que enfrentamos são solucionáveis, mas isso exige que nos asseguramos de que os mecanismos de resolução de problemas internacionais resolvam efetivamente os problemas”, disse o secretário-geral das Naçõs Unidas no discurso que abriu o debate.

Como é tradição, o primeiro discurso esteve a cargo do Presidente do Brasil. É assim porque, nos primórdios destas reuniões, ninguém queria falar em primeiro lugar, e os representantes do Brasil foram-se oferecendo, até ganharem esse direito. Trivialidades de parte, Lula da Silva voltou a afirmar-se como uma das principais vozes da resistência ao modus operandi do Ocidente, seja na resolução de conflitos, seja nas opções económicas.

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Lula referiu o documento que escreveu a quatro mãos com o Presidente da China, Xi Jinping para um diálogo entre a Rússia e a Ucrânia, e que foi muito criticado pelos aliados da Ucrânia, que viram nele um texto próximo das posições russas; revoltou-se contra o indústria do armamento e contra os milhões que podiam estar a ser usados para combater as alterações climáticas; e ridicularizou a opção de manter Cuba numa lista de sanções “destinadas a países que alegadamente promovem o terrorismo”.

Parte do discurso do brasileiro foi um apelo por uma economia mais controlada, e não foi sequer metafórico. “A falsa oposição entre Estado e mercado foi abandonada pelos países desenvolvidos, que voltaram a praticar políticas industriais ativas e uma forte regulação da economia nacional. Num mundo globalizado, não faz sentido recorrer a falsos patriotas e isolacionistas, nem há esperança em recorrer a experiências ultraliberais que só agravam as dificuldades de um continente empobrecido”, disse Lula, chamado a atenção para o emergente poder da inteligência artificial, que, no seu entender, ameaça tornar exclusivo algo que devia ser comum: o conhecimento e, com ele, o desenvolvimento tecnológico das nações de forma igualitária.

Numa referência ao recente braço de ferro com o dono da rede social X, Elon Musk, Lula apelou a “um futuro que não se deixe intimidar por indivíduos, corporações ou plataformas digitais que se consideram acima da lei”, porque “a liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras”. A terceira parte do seu discurso foi dedicada às alterações climáticas, que soube articular com eloquência com os problemas relacionados com falhas na distribuição da riqueza, na visão do Presidente brasileiro. “Em tempos de polarização crescente, expressões como ‘desglobalização’ e ‘desacoplamento’ tornaram-se comuns, mas é impossível ‘desplanetizar’ a nossa vida em comum. Estamos condenados à interdependência das alterações climáticas.”

Lula foi o primeiro, mas não haveria de ser o único, a focar boa parte do seu discurso na paralisia que afeta a tomada de decisões na ONU, estado de inoperância que torna o organismo pouco relevante na resolução de conflitos, o seu seminal objetivo. “Temos de ir muito mais longe e dotar a ONU dos meios necessários para enfrentar as vertiginosas mudanças no panorama internacional. Vivemos numa época de crescente angústia, frustração, tensão e medo. Estamos a assistir a uma escalada alarmante de disputas geopolíticas e rivalidades estratégicas”, disse o Presidente, que chamou ainda à atenção para a situação em Gaza, sem, no entanto falar de genocídio.

“Em Gaza e na Cisjordânia, estamos a assistir a uma das maiores crises humanitárias da história recente, que agora se alastra perigosamente ao Líbano. O que começou por ser uma ação terrorista de fanáticos contra civis israelitas inocentes tornou-se um castigo coletivo para todo o povo palestiniano. Já temos mais de 40 mil vítimas mortais, na sua maioria mulheres e crianças. O direito de defesa transformou-se em direito de vingança, o que impede um acordo para a libertação dos reféns e adia o cessar-fogo”.

Biden otimista na despedida

Um dos momentos mais esperados da agenda chegou a seguir, como a intervenção de Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, que teve nesta 79º Assembleia Geral a sua última oportunidade de falar num grande palco internacional enquanto detentor do cargo. Chegou com otimismo e até com uma piada. “Fui eleito senador pela primeira vez nos Estados Unidos da América em 1972, sei que pareço ter apenas 40 anos”, disse Biden, que começou o discurso a discorrer sobre todas as guerras, conflitos e convulsões que o seu longo tempo na política lhe permitiu observar de perto: Guerra Fria, guerra no Vietname, apartheid na África do Sul, guerra nos Balcãs, o 11 de Setembro e o desencadear de várias guerras posteriores.

Biden falou de tudo isto sem entrar nos detalhes do falhanço que foi a retirada do Afeganistão, para chegar a uma conclusão: é possível resolver as coisas. “Eu sei, eu sei, muitos olham hoje para o mundo, veem dificuldades e reagem com desespero. Mas eu não. Como líderes, não temos esse luxo”.

Todo o seu discurso foi construído à volta do conceito de “virar a página”, expressão que usou várias vezes, enquanto ia elencando o que muito possivelmente considera os mais óbvios sucessos da sua presidência. “Na pior pandemia do século, garantimos que a covid já não controlava as nossas vidas. Defendemos a Carta das Nações Unidas e garantimos a sobrevivência da Ucrânia como nação livre. O meu país fez o maior investimento em energia limpa para o clima”, disse o americano, frisando que Vladimir Putin, Presidente da Rússia, falhou nos seus principais objetivos: subjugar a Ucrânia e enfraquecer a NATO.

Tentou apaziguar as relações com a China, agradecendo até a colaboração na luta contra o tráfico de drogas sintéticas letais, sem deixar de frisar que os Estados Unidos são contra “concorrência económica desleal”, contra “coerção militar de outras nações no Mar do Sul da China” a favor da “estabilidade no Estreito de Taiwan”.

Menção ao sofrimento palestiniano sem criticar Israel

As palavras que reservou para a guerra entre Israel e o Hamas não foram para condenar Israel pelo uso desproporcional da força em Gaza. “O mundo não deve recuar perante os horrores do 7 de Outubro. Qualquer país, qualquer país, teria a responsabilidade de garantir que tal nunca mais pudesse acontecer. Milhares de terroristas armados invadiram um Estado soberano, massacrando mais de 1200 pessoas, incluindo 46 americanos, nas suas casas e num festival de música. Houve atos desprezíveis de violência sexual e 250 inocentes foram feitos reféns”, disse Biden.

As famílias dos reféns, prosseguiu, estão “a passar por um inferno, tal como os civis inocentes em Gaza estão a passar por um inferno”. Promenorizou — “demasiadas famílias, deslocadas, amontoadas em tendas, enfrentando uma situação humanitária terrível” —, mas não pediu a responsabilização de Israel, nem sequer pelos recentes ataques ao Líbano. Viria a seguir o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, para compensar em excesso o que em Biden fora tão parco.

Ataque israelita atingiu tendas de pessoas deslocadas junto ao hospital de Al-Aqsa
Ataque israelita atingiu tendas de pessoas deslocadas junto ao hospital de Al-Aqsa Anadolu

Biden continuou com referências a outros conflitos, como o do Sudão: “Uma guerra civil sangrenta desencadeou uma das piores crises humanitárias do mundo, com mais de oito milhões à beira da fome e outras centenas de milhares já a morrer à fome”. E acabou a parte temática do seu discurso chamando a atenção para a necessidade de regulamentar a inteligência artificial (IA), como já fizera Lula. “Nada é certo sobre como a IA irá evoluir ou como será aplicada. Ninguém sabe todas as respostas. Em primeiro lugar, como é que nós, enquanto comunidade internacional, governamos a IA? [...] Precisamos de um esforço igualmente urgente para garantir a segurança, a proteção e a fiabilidade da IA ​​à medida que a IA se torna mais poderosa”, pediu o Presidente americano.

O seu discurso terminou com um apelo para que os líderes nunca se esqueçam que existem para representar “o povo”. “Estamos aqui para servir o povo e não o contrário. Porque o futuro será conquistado por aqueles que conseguirem despertar todo o potencial do seu povo para respirar livremente, para pensar livremente, para inovar, para educar, para viver”. Nelson Mandela ensinou: “Parece sempre impossível até que seja feito”, citou Biden.

Erdogan culpa países que apoiam Israel por “massacre”

Todo este otimismo haveria de esbarrar contra a exasperação de Erdogan, que falou logo a seguir, durante 35 minutos. A primeira metade do seu discurso, ou pouco mais, foi toda dedicada a Gaza. “Para ser franco, infelizmente, nos últimos anos, as Nações Unidas não conseguiram cumprir a sua missão fundadora e tornaram-se gradualmente numa estrutura disfuncional. A justiça internacional não pode ser deixada na vontade de cinco Estados membros privilegiados do Conselho de Segurança. E o exemplo mais dramático disso é a guerra, o massacre que tem vindo a acontecer em Gaza durante os últimos 350 dias”, começou o Presidente turco.

O Presidente turco na cimeira dos75 anos da NATO
O Presidente turco na cimeira dos75 anos da NATO Elizabeth Frantz/Reuters

Em Gaza, não só morrem crianças, como também está a morrer o sistema das Nações Unidas. Os valores que o Ocidente afirma defender estão a morrer. A verdade está a morrer. As esperanças da humanidade de viver num mundo mais justo estão a morrer”. De braços abertos, Erdogan dirigiu-se à sala: “De que estão à espera para evitar o genocídio em Gaza, para pôr fim a esta crueldade, a esta barbárie? De que estão à espera para deter Netanyahu e a sua rede de assassinos em massa que põe em perigo a vida do povo palestiniano?”.

O chefe de Estado turco apresentou dezenas de números, deu exemplos sobre a barbárie de que fala, nomeadamente as queixas dos presos palestinianos sobre a tortura nas prisões israelitas, e continuou por essa linha, lançando perguntas à plateia, implicando parte dos que assistiam no “massacre”. “Gostaria de apelar aos países que apoiam Israel de forma incondicional: até quando vai aguentar a vergonha de presenciar este massacre?

“A única razão para a agressão de Israel contra o povo palestiniano é o apoio incondicional de um grupo de países, e países que têm uma palavra a dizer sobre o que Israel faz e são abertamente cúmplices deste massacre. Trabalham para um cessar-fogo e, nos bastidores, continuam a enviar armas e munições para que Israel possa continuar os seus massacres.”

Erdogan mencionou o apoio que ainda é preciso prestar aos seus vizinhos, nas guerras esquecidas da Síria, e na reconstrução do Iraque, e terminou com um pedido aos 193 membros da ONU para que reconheçam a República Turca do Norte de Chipre, parte norte de uma ilha dividida há 50 anos depois de uma guerra em cipriotas turcos e cipriotas gregos. Apenas a Turquia reconhece esse território, que tem dificuldades em manter uma economia, na medida em que não é reconhecido por nenhum outro Estado. A parte sul, República de Chipre, é membro da União Europeia.

O líder turco deixou uma nota de repúdio pelos “ataques à instituição da família, o pilar da sociedade”, exemplificado, disse, pela “desgraça encenada na abertura dos Jogos Olímpicos de 2024”. Foram “cenas perturbadoras que feriram não só o mundo católico, o mundo cristão, mas todos os que respeitam os valores sagrados”. A “sexualização”, concluiu o líder turco, é “uma imposição global” e “uma guerra contra a natureza sagrada e humana”.

Ainda da parte da manhã, falou também o rei da Jordânia. Igualmente perplexo com a inaptidão da ONU, Abdullah II optou por utilizar o que se passa em Gaza como alerta para o futuro. “Na ausência de responsabilização global, os horrores repetidos são normalizados, ameaçando criar um futuro onde tudo será permitido em qualquer parte do mundo. É isso que queremos? Agora é o momento de garantir a proteção do povo palestiniano. É dever moral desta comunidade internacional estabelecer um mecanismo de proteção para eles em todos os territórios ocupados”.

Muitas vezes criticado por não abrir a porta à entrada de refugiados da Cisjordânia, o monarca quis responder com clareza: “Deixem-me ser muito, muito claro: isso nunca acontecerá. Nunca aceitaremos a deslocação forçada de palestinianos, que é um crime de guerra”.

Não deixa de ser irónico que quase todos os líderes tenham culpado a ONU por permitir que as guerras que aterrorizam milhões em tudo o mundo continuem em pleno desenvolvimento em Gaza, no Sudão, na Ucrânia, e Guterres tenha colocado essa responsabilidade nos próprios. “O nível de impunidade no mundo é politicamente indefensável e moralmente intolerável. Atualmente, um número crescente de governos e outras entidades sentem-se no direito de espezinhar o direito internacional. Podem violar a Carta das Nações Unidas, podem fechar os olhos às convenções internacionais sobre direitos humanos ou às decisões dos tribunais internacionais, podem invadir outro país, devastar uma sociedade ou ignorar totalmente o bem-estar do seu próprio povo. E nada acontecerá”. É realmente assim, mas se não é na ONU, onde mais se podem resolver estes problemas?