A poucas horas da entrada em vigor do acordo de cessar-fogo entre Israel e o grupo palestiniano Hamas, após 15 meses de guerra, são ainda várias as incógnitas e alguns os sinais de que poderá não ser respeitado. “Se tivermos de voltar a combater, fá-lo-emos de formas novas e vigorosas”, avisou este sábado o primeiro-ministro israelita. No seu primeiro discurso desde o anúncio do acordo, Benjamin Netanyahu garantiu que mantém o direito de “retomar” os combates em Gaza e que conta com o apoio dos Estados Unidos para isso.

A campanha de Israel “ainda não acabou”, disse, assegurando que, do lado americano, tanto o Presidente cessante, Joe Biden, como Donald Trump, que toma posse na segunda-feira, apoiam esse direito israelita se a segunda fase do cessar-fogo se revelar “infrutífera”.

Quanto à primeira fase, que arranca às 8h30 locais de domingo (6h30 em Lisboa), Netanyahu afirmou tratar-se de um cessar-fogo “temporário”. E sublinhou que Israel estabeleceu algumas condições prévias para aceitar o acordo, incluindo a manutenção do acesso a uma faixa estreita ao longo da fronteira de Gaza com o Egito e a uma zona-tampão ao longo da fronteira de Gaza. Netanyahu garantiu que as forças de Israel não apenas manterão o controlo como reforçarão a sua presença nessas zonas.

Hamas cedeu, diz Netanyahu. Israel “só conseguiu cometer crimes de guerra”, acusa Hamas

Acossado por mais uma demissão no seu Governo e pressionado pela opinião pública dentro e fora de portas, visou o Hamas ao dizer que o grupo palestiniano “alterou a sua posição”. Fê-lo depois de as forças israelitas terem enfraquecido o “eixo iraniano”, matando altos dirigentes do Hamas e do movimento xiita libanês Hezbollah. Por causa disso, prosseguiu Netanyahu, “o Hamas aceitou condições que tinha rejeitado no passado”, sublinhando também que “Israel mudou a face e a realidade do Médio Oriente”.

Após o discurso, reiterou na rede social X que a “campanha” em Gaza “ainda não acabou”. “Ainda temos pela frente uma longa e exigente jornada. Não é altura de nos dispersarmos, é tempo de nos unirmos. É isso que ordena a herança de Israel. É isso que a geração da vitória espera de nós”, acrescentou.

Por seu lado, o Hamas disse que Israel “não conseguiu atingir os seus objetivos agressivos, só conseguiu cometer crimes de guerra que desonram a dignidade da humanidade”.

Ministro da Segurança demite-se e desafia colega das Finanças a fazer o mesmo

O apelo de Netanyahu para cerrar fileiras tinha como destinatários os israelitas em geral e, muito em particular, os membros do seu Governo. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, que se demitiu este sábado, apelou ao colega das Finanças, Bezalel Smotrich, para que fizesse o mesmo. “A verdade é que o Hamas ainda não foi derrotado, pelo que é evidente que o regresso à guerra é inevitável”, afirmou Ben-Gvir.

O ministro demissionário disse que o discurso de Netanyahu mostrou que este não tem qualquer intenção de retomar a guerra, apesar de o primeiro-ministro ter manifestado a sua disponibilidade para tal, ainda para mais com o respaldo do aliado americano. Ben-Gvir apelou a Smotrich para o ajudar a evitar a segunda fase do acordo, abandonando o Governo e só regressando a ele se a guerra recomeçar.

Horas antes de falar à nação, Netanyahu já tinha avisado que Israel não avançará com o cessar-fogo enquanto não receber uma lista dos 33 reféns que deverão libertados pelo Hamas nesta primeira fase. “Não poderemos avançar com o acordo até recebermos a lista dos reféns que serão libertados, como foi acordado. Israel não tolerará violações do acordo. A única responsabilidade é do Hamas”, disse Netanyahu numa nota publicada no X.

Espera-se que 33 dos 98 reféns israelitas ainda nas mãos do Hamas sejam libertados nesta primeira fase. Em troca, Israel libertará cerca de 2000 palestinianos detidos em várias prisões do país.

Gaza prepara-se para reabrir estradas, Israel prepara-se para “postura defensiva reforçada”

No terreno, há movimentações de responsáveis de um lado e do outro. O município de Gaza anunciou ter apresentado um plano para reabrir gradualmente algumas das principais estradas do enclave palestiniano quando o acordo entrar em vigor. Em comunicado, o município sublinhou “a necessidade de reforçar a parceria com as instituições locais e internacionais para assegurar a prestação de serviços básicos e apoiar os esforços de reconstrução na cidade”.

Também o porta-voz da Comissão Palestiniana para os Assuntos dos Detidos e Ex-Detidos, Thaer Shreiteh, emitiu uma declaração, neste caso sobre o mecanismo de receção dos prisioneiros libertados no âmbito do acordo. O mecanismo será determinado até ao meio-dia de domingo, precisou, acrescentando que será decidido em consulta com as autoridades competentes, após verificação de procedimentos que garantam a segurança dos prisioneiros e tenham em conta a sua condição física.

Do outro lado, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel, Herzi Halevi, informou ter regressado da Faixa de Gaza, onde as forças israelitas iniciaram os “preparativos operacionais” para a aplicação do acordo. Nos próximos dias, os militares irão preparar-se para “uma postura defensiva reforçada ao longo da fronteira” com o enclave, disse ainda.

Há membros do Governo de Netanyahu “a rezar para que o cessar-fogo falhe”, diz ex-embaixador israelita

Alon Pinkas, antigo embaixador e cônsul-geral de Israel em Nova Iorque, acredita que “há muitas pessoas no Governo [de Netanyahu] a rezar ativamente para que o cessar-fogo falhe”. Em declarações à Al Jazeera, o ex-diplomata precisou que “todos os que votaram contra o acordo, dois no Governo e cinco ou seis no plenário geral do Executivo, irão provavelmente torcer para que este acordo fracasse”.

As próximas duas semanas serão “críticas”, tendo em conta o território densamente povoado da Faixa de Gaza e o facto de as forças israelitas e os combatentes do Hamas poderem estar em qualquer lugar e os combates poderem “eclodir a qualquer momento”, acrescentou Pinkas.

Muitas vezes, lembrou ainda, há incidentes “localizados” nos dias seguintes a qualquer cessar-fogo, sendo que o sucesso deste acordo dependerá do modo como Israel encara esses incidentes e se irá defini-los como “uma violação flagrante”.

Guterres “convencido” do fim dos combates, regresso dos reféns e da ajuda humanitária

A grande nota de otimismo veio do secretário-geral das Nações Unidas, que afirmou estar “convencido” de que, a partir de domingo, os combates terminarão, os reféns serão libertados e a ajuda humanitária entrará na Faixa de Gaza. Numa conferência de imprensa em Beirute, onde se encontra numa visita de três dias, António Guterres disse não ter sido informado pelo Governo israelita sobre as disposições do acordo, mediado pelo Catar, Egito e Estados Unidos.

Ainda assim, “Israel assinou o acordo, e é evidente que há obrigações que têm de ser respeitadas”, sublinhou. E apesar das limitações que o Parlamento israelita impôs à agência da ONU para os refugiados palestinianos, Guterres disse: “Não temos qualquer intenção de suspender as nossas operações, a menos que Israel as interrompa. O acordo é claro, e Israel não deve impedir a entrada de ajuda humanitária em Gaza”.

A ser cumprido, o acordo prevê nesta primeira fase, de 42 dias, além da troca de prisioneiros, a entrada diária na Faixa de Gaza de cerca de 600 camiões de ajuda humanitária, incluindo 50 de combustível.