Os mais rigorosos dirão que Guterres colocou em causa o estatuto apaziguador e de isenção das Nações Unidas, atentando contra um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional e oferecendo a um déspota razões para crer que as instituições do mundo livre o credibilizam.

Os mais pacifistas entenderão que esta viagem foi um ato corajoso e nobre, de quem está realmente interessado em alcançar a paz, nem que para isso tenha de apertar a mão ao dito déspota.

Os mais racionais acharão que tudo isto não passa de qualquer coisa de absolutamente banal: um profissional no exercício das suas funções.

Alguns factos sobre esta viagem, porém, e independentemente do caráter válido ou imoral com que os possamos classificar, não deixam de ser isso mesmo: factos.

Facto 1

António Guterres é o secretário-geral das Nações Unidas. Nessa qualidade, afinal, o que é que lhe compete? Juiz, CEO, diplomata, árbitro das relações internacionais. Qualquer uma destas classificações estaria longe de ser completamente incorreta, mas nenhuma é suficientemente abrangente para descrever as competências deste que Trygve Lie (primeiro secretário-geral da ONU) considerou ser o trabalho mais difícil do mundo. A carta das Nações Unidas denomina-o “chefe administrativo da Organização” (art. 97).

A História do cargo, como a de quem o ocupou, dificulta ainda mais a tarefa de encontrar uma definição clara acerca deste trabalho, das funções que lhe são devidas e dos limites dessas mesmas funções. De algum modo, pode dizer-se que cada secretário-geral exerceu a função à sua maneira, focado em preocupações e problemáticas globais muito distintas, recolhendo maior ou menor simpatia entre os pares.

Kurt Waldheim (1972-1981) esforçou-se particularmente pela agenda diplomática direcionada aos conflitos no Médio Oriente; Boutros Boutros-Ghali (1992-1996) protagonizou um mandato especialmente orientado para a resolução de conflitos muito violentos, de que é exemplo o genocídio do Ruanda ou a guerra civil da Jugoslávia; Kofi Annan (1997-2006) tinha uma ligação forte às questões da saúde, sobretudo em África; António Guterres (2017-) é muito atento às alterações climáticas e à sustentabilidade global.

O que é comum a todos estes e aos outros cinco (nove no total) é a vigilância e manutenção constantes da paz e segurança internacionais (art.99). Neste aspeto, porventura o mais importante e medular no âmbito deste cargo, não é possível afirmar que a viagem de Guterres a Moscovo no passado dia 24 de outubro constitui uma contradição face ao que na Carta das Nações Unidas consta como sendo uma parte das suas obrigações.

Facto 2

Ao contrário do que acontece noutros conflitos, como é o caso da guerra no Médio Oriente, em que as raízes ancestrais da animosidade residem em múltiplas e antigas razões, das mais diversas ordens, cultural, religiosa, até existencial, as motivações da guerra na Ucrânia são imensamente mais simples: existe um Estado com pretensões revisionistas a tentar recuperar uma geografia pela História ultrapassada e que, para isso, invadiu outro Estado.

Neste caso concreto, a dinâmica da conflitualidade é muito clara e não deixa margem para dúvidas: a Rússia é o país invasor e a Ucrânia é o país invadido. Por mais que as duas partes beligerantes tenham a sua própria perceção acerca desta guerra, como acerca da própria história que as liga social e culturalmente, não se pode ignorar a separação entre quem iniciou o conflito e quem está a tentar sobreviver a ele, defendendo-se.

Isto importa, ou deveria importar, no momento em que são desenhados e concretizados os esforços pela paz e pelo fim das hostilidades. De outra forma, isto é, se não fosse preciso ter em conta esta dinâmica de invasor/invadido, bastaria pedir à Ucrânia que, simpaticamente, fizesse o favor de ceder parte do seu território à Rússia para que a paz fosse alcançável.

Os dois países não estão em pé de igualdade em matéria de culpa, pelo que a paz não deve ser um ónus sobretudo imputado àquele que não é culpado. Por outras palavras, não é perante o invasor que nos devemos curvar.

Facto 3

Em junho de 2024, teve lugar na Suíça uma cimeira de paz organizada pela Ucrânia. Algumas ausências seriam expectáveis: a da China, por exemplo, ou a da Rússia, evidentemente. Sem a Rússia à mesa, porém, dificilmente a cimeira, esta ou qualquer outra, pode ser “de paz”. Mas esse não é o argumento central deste facto.

Guterres também não marcou presença na dita cimeira. Declinou o convite da anfitriã Ucrânia, alegando querer manter a neutralidade. Este argumento pode surpreender-nos, nomeadamente pela negativa, e sobretudo tendo em conta o facto 2. Mas é válido e não constitui por si só uma forma de abandono da luta pela causa ucraniana neste conflito, nem uma forma de imoralidade perante a condução da sua função de árbitro do mundo.

Manter esta validez, todavia, obrigaria a recusar igualmente a viagem até Kazan, na Rússia, por ocasião da cimeira dos BRICS. Esta viagem não só rompe a intenção de neutralidade, como é bizarra num contexto em que, se esta neutralidade era para ser rompida, teria feito mais sentido marcar presença na Suíça, ao lado de uma larga maioria de Estados alinhados com os valores e princípios orientadores da ONU e do mundo liberal.

Os BRICS não estão em sintonia com estes valores e princípios, estabelendo-se cada vez mais como uma cúpula alternativa a eles. Neste aspeto, Guterres não foi capaz de se provar verdadeiramente isento, mesmo que à sua função central de buscar incondicionalmente a paz não possamos imputar um erro absoluto ao ter ido a Kazan. Também é preciso recordar que Guterres não foi à Rússia para falar exclusivamente da guerra na Ucrânia. Mas sobre isso avançamos para um quarto facto.

Facto 4

Nenhum ganho ou resultado efetivo foi alcançado com a deslocação de Guterres a Kazan. Isto vale para o contexto russo-ucraniano, como para os outros contextos, do Médio Oriente ou dos interesses dos BRICS nas Nações Unidas, por exemplo. Quem o confirmou foi o porta-voz adjunto do secretário-geral, Farhan Haq.

Atualmente, o grupo BRICS reúne um total de 9 Estados – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Etiópia, Irão, Egito e Emirados Árabes Unidos – em torno de um conjunto de interesses políticos, económicos e diplomáticos substancialmente opostos aos interesses de ordem e segurança internacionais para os quais se orientam instituições como a ONU. Em bom rigor, os BRICS querem estabelecer-se como uma nova ordem, não necessariamente oposta, mas alternativa à vigente. Além disso, estes Estados e os seus regimes apresentam graves deficiências em matéria de democracia, direitos humanos e respeito por minorias/mulheres/crianças. Mesmo assim, porém, são Estados com pretensões de maior representatividade global, designadamente em sede de Nações Unidas.

Guterres foi fazer e dizer pouco a Kazan. Os seus apelos foram muito idênticos àqueles que habitualmente o vemos fazer perante líderes, plateias e sociedades civis que entendem a sua linguagem. Para conseguir qualquer coisa de inovador, benéfico ou frutífero nesta viagem, teria sido necessário fazer mais e fazer diferente.

Por tudo isto, a vénia pode até não envergonhar, mas não era certamente necessária.