Diz que se chama simplesmente Ana. Tem 25 anos e vive no concelho da Moita. A Ana é uma das 200 milhões de meninas e mulheres que atualmente vivem mutiladas genitalmente, uma agressão física e mental e um atentado aos direitos fundamentais que continua a acontecer a coberto da cultura de certos povos. Em Portugal, são mais de 6500 as mulheres com mais de 15 anos a residir no país que foram sujeitas a esta prática, segundo dados do projeto ‘Práticas Saudáveis – Fim à Mutilação Genital Feminina’, que está a traçar o retrato do que se passa em Portugal no que respeita à mutilação genital feminina (MGF).
Ana chegou a Portugal com 15 anos vinda da Guiné-Bissau. Vinha mutilada genitalmente. Foram «umas mulheres na casa da minha vizinha», conta-nos. Ana tinha sete anos e aquele foi um dia que nunca irá esquecer: «Lembro-me muito bem. Estava em casa e na casa da minha vizinha estavam a praticar isso. Eu estava a subir para um muro e depois para uma árvore para ver o que estava a acontecer e a minha tia disse “já que estás a espreitar vai já fazer tu também que eu dou-te uns ténis”. E eu fui para ter uns ténis. Ela colocou-me um pano na cabeça e fomos para a casa da minha vizinha. Comecei a chorar porque vi uma faca. Três mulheres prenderam-me os braços e outras os pés e empurraram-me para o chão, depois taparam-me os olhos e mutilaram-me».
A mutilação genital feminina é um procedimento invasivo em tecidos saudáveis, sem nenhuma necessidade de intervenção médica. Implica a remoção parcial ou total da genitália externa feminina ou outra lesão nos órgãos genitais femininos por razões não médicas, podendo variar desde a raspagem e cauterização da genitália até à remoção total do clitóris e a costura dos lábios para deixar a abertura vaginal menor. O procedimento é realizado principalmente em meninas entre a infância e os 15 anos de idade, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Para além de ser uma atrocidade, é feita de forma clandestina e sem cuidados higiénicos, sendo por si só um ato que põe em causa a vida das meninas e jovens. «Fiquei três semanas muito doente, com muitas dores, perdi muito sangue, não me deram medicamentos, nem nada», conta-nos Ana.
A MGF pode resultar em severos danos físicos e psicológicos. Pode causar dores durante as relações sexuais, infeção, cistos e infertilidade, e aumentar o risco de HIV, fístula obstétrica, complicações no parto e mortalidade de recém-nascidos. Também pode desencadear depressão, pesadelos, pânico e trauma.
«Algumas mulheres relatam consequências no imediato, dor, sangramento, infeções, para outras as consequências não se atenuam ao longo da vida. Várias partilham o medo que vivem, em segredo, de não poderem engravidar ou de que tenham complicações obstétricas, como trabalho de parto prolongado, parto dificultado, morte dos filhos à nascença e temem também pela própria vida. Uma jovem mulher disse-me um dia que a principal razão para querer vir para Portugal prendia-se com o medo de ter filhos no mato e pensar que o filho poderia morrer e ela também», conta-nos Alexandra Alves Luís, cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras, que trabalha com raparigas e mulheres que sobreviveram à mutilação genital feminina, na sua maioria excisadas nos seus países de origem (Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Senegal, Gâmbia, Eritreia, entre outros e com meninas portuguesas que foram levadas pelos seus familiares a esses países para serem excisadas lá. «Uma outra dimensão é o trauma que as acompanha desde meninas até ao fim da vida», acrescenta.
O último relatório da Fundo das Nações Unidas para a População, Unfpa, sobre a 'Situação da População Mundial 2020', publicado em junho , diz que só este ano vão ser submetidas à mutilação genital feminina 4,1 milhões de meninas. Recorda que no momento 200 milhões de meninas e mulheres vivem com alguma forma de mutilação genital, que é prática em 31 países, sofrendo não apenas no momento, mas também pela falta de apoio e serviços que atendam às necessidades constantes e subsequentes a nível físico e mental.
Segundo este relatório, a MGF está concentrada no continente africano, mas também é prevalente em países como Iraque e Iémen, e em alguns países asiáticos, como a Indonésia. Os dados disponíveis mostram que a proporção de mulheres de 15 a 49 anos que foram submetidas à MGF varia de cerca de 1% nos Camarões e no Uganda a 90% ou mais no Djibuti, Egito e Guiné. A MGF também é encontrada na Austrália, União Europeia, no Japão, na Nova Zelândia, no Reino Unido e nos Estados Unidos. As razões são sobretudo culturais e religiosas.
Um projeto para conhecer e intervir na realidade portuguesa
O Projeto ‘Práticas Saudáveis – Fim à Mutilação Genital Feminina’ resulta da iniciativa da secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, em articulação com a área governativa da Saúde. Teve início em novembro de 2018, com a assinatura de um protocolo de cooperação entre as três entidades que coordenam o projeto: a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).
O projeto está a trabalhar em várias frentes para compreender e tratar os casos identificados e por identificar, nomeadamente com os 10 Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) da região de Lisboa que integram o projeto, onde os seus profissionais estão cada vez mais a ser capacitados através de formações para identificarem e tratarem casos. Arco Ribeirinho, Loures-Odivelas, Sintra, Amadora, Almada-Seixal, integram o projeto desde 2018, sendo que no início o de 2020 a iniciativa foi alargada a mais cinco ACES: Cascais, Estuário do Tejo, Lisboa Central, Lisboa Ocidental e Oeiras, e Lisboa Norte. O objetivo será alargar este modelo de intervenção ao resto do país.
Estando ancorado na saúde, onde mais facilmente os casos são identificados, ele interliga-se também com a área da educação, promovendo ações em escolas, e com a justiça, na medida em que, por exemplo, através das CPCJ - Comissões de Proteção de Crianças e Jovens também poderão ser identificados situações de risco ou efetivas. A articulação com associações no terreno ajuda também a compreender e intervir melhor junto destas comunidades. Deste trabalho já resultaram dados que começam a desenhar a realidade no país.
Quem são estas mulheres em Portugal?
Os dados recolhidos até ao momento indicam que no país residem 6576 mulheres vítimas de MGF. Apesar de o projeto Práticas Saudáveis só ter arrancado em 2018, existem alguns números prévios. Os números oficiais indicam 40 casos identificados em 2014. Em 2015, foram identificados 59 casos. Em 2016, 76 casos. Em 2017, 59 casos. Em 2018, 64 casos. E em 2019, fruto já deste trabalho, foram registados 129 casos. Até 30 de maio de 2020, foram detetados 63 casos.
«A esmagadora dos casos que são detetados foram praticados quando as mulheres eram pequenas nos países das suas famílias. 63%, são da Guiné-Bissau e 29% de Guiné Conacri. Isto são dados de 2019, ano em que tivemos o maior número de dados em que se faz este registo. Isto é positivo, ao contrário do que se possa pensar, pois significa que se tem mais capacidade de detetar as consequências e a própria situação de a mulher ter sido mutilada», refere Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade.
Por ser um tema tabu nas próprias famílias e feito na clandestinidade, a recolha de dados é difícil. A ideia média das mulheres na altura da deteção é 30 anos. «Estas situações verificaram-se no âmbito de consultas, internamento, gravidez e puerpério. Em muitas destas mulheres só é detetada a mutilação quando ficam gravidas e começam a fazer as consultas de acompanhamento», explica a secretária de Estado.
Alexandra Alves Luís trabalha no terreno com estas mulheres através da sua associação e confirma que o mais difícil a combater a MGF é «o silêncio e isolamento imposto às sobreviventes/vítimas, que impede muitas vezes que estas procurem ajuda. São necessários espaços seguros para que as raparigas e mulheres possam ser apoiadas em segurança».
Apesar de tudo, a consciencialização e oposição à MGF é cada vez maior. «A luta contra esta prática é liderada pelas mulheres e raparigas das comunidades afetadas. É uma luta dura, desgastante e que traz muitas vezes consequências dentro da comunidade para essas raparigas e mulheres, mas acreditamos que numa geração esta prática pode ser eliminada e para isso trabalhamos todos os dias», assegura a responsável da Associação Mulheres Sem Fronteiras. E acrescenta: «As jovens e os jovens com quem desenvolvemos atividades em contexto escolar ou comunitário são na sua grande maioria contra a prática e várias/os tornam-se ativistas contra esta e outras práticas nefastas à saúde das raparigas e mulheres».
Ana confirma esta nova forma de pensar das novas gerações: «Eu perguntei mais tarde à minha tia porque faziam aquilo e ela disse que era uma tradição boa para as raparigas. Eu não tenho esta opinião. Tive problemas e continuo a ter e aquilo não fez nada de bom na minha vida. Sou contra esta prática e não vou permitir que isto aconteça a ninguém».
Pena de prisão até 10 anos e outras estratégias de combate
No mundo são 44 os países que têm leis, decretos executivos ou resoluções relacionadas com a mutilação genital feminina. Portugal é um destes países. O crime foi introduzido em Portugal em setembro de 2015, com a entrada em vigor do Artº144º-A, do Código Penal. Até então, este tipo de crime era, ainda assim, punido em Portugal, mas como crime de ofensas à integridade física grave.
Ou seja, desde 2015, o artigo 144º do Código Penal prevê que «quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino, por razões não médicas é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos». Além disso, «os atos preparatórios do crime previsto no número anterior são punidos com pena de prisão até 3 anos».
Em julho deste ano, pela primeira vez, uma mulher foi acusa do crime de mutilação genital feminina. Residente na Amadora, foi acusada pelo Ministério Público por ter cometido o crime sobre a sua filha, nascida em 2017. A mulher aguarda julgamento em liberdade e incorre numa pena de prisão que pode chegar aos 10 anos. Este é um dos sete inquéritos que deram origem a investigação em 2019, envolvendo nove crianças. Foram originados quer por comunicação da CPCJ ou dos próprios tribunais de família e menores. Nestes inquéritos em curso as eventuais vítimas têm como origem a Guiné-Bissau, Guiné Conacri e Senegal.
«Acreditamos que numa geração esta prática pode ser eliminada»
Porém, a melhor estratégia para combater esta prática lesiva nem é a criminalização, mas sim pela via da saúde e pela passagem da mensagem às próprias jovens, à comunidade e aos líderes religiosos, assegura-nos Rosa Monteiro: «É muito facilitador abordarmos este tema na perspetiva da saúde porque conseguimos mais facilmente a adesão das próprias comunidades onde existe a prática do que propriamente através da criminalização». E acrescenta: «Tradicionalmente é justificado e legitimado como sendo uma prescrição que vem do Corão. Portanto, o trabalho com as lideranças religiosas é decisivo precisamente para desconstruir esta ideia - muitos líderes religiosos principalmente na Guiné-Bissau já se desmarcaram completamente dessa associação. Isto para se perceber que temos de fazer uma intervenção multidimensional, não é só pela perspetiva da perseguição criminal das pessoas, que tende a fazer aumentar a sua clandestinidade. Se a abordagem for pela perspetiva da saúde das mulheres e das famílias nós conseguimos uma intervenção realmente transformadora, depois obviamente complementando com a capacitação das mulheres e das raparigas».
Para erradicar de vez este problema a cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras considera que é necessário «persistir, resistir, lutar, apoiar as raparigas e mulheres e as associações das comunidades afetadas que lutam contra esta prática e outras formas de violência contra as mulheres. Trabalhar em rede nas respostas às sobreviventes e nas estratégias nacionais e internacionais. Declarar-se publicamente contra a prática».
Um mundo em mudança: acabar com a MGF em 2030
As Nações Unidas trabalham pela erradicação total da prática até 2030, segundo o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5, reconhecendo o efeito positivo que isso teria sobre a saúde, dignidade, educação e o avanço económico de meninas e mulheres.
Estamos a uma década do objetivo e com números avassaladores como aqueles que avançámos no início do artigo: a cada ano, mais 4,1 milhões de meninas são mutiladas genitalmente. Assim, é viável esta meta? «Temos de acreditar que sim. Temos de fazer tudo no sentido de erradicar e de deixar bem claro que o nosso cartão é totalmente vermelho relativamente à prática. E portanto isso implica um compromisso político, implica um compromisso alargado dos serviços e aqui é central a justiça, a educação e a saúde. São serviços que têm de ter um papel e uma responsabilidade acrescida na vigilância relativamente a estes riscos e a esta situação. Não só na deteção e na prevenção, mas também junto das sobreviventes», salienta a secretária de Estado. O grande tronco disto é a informação, a formação e a capacitação dos profissionais. Sem conhecimento não há reconhecimento e capacidade de intervenção.
Apesar do seu reconhecimento e de ser crime em muitos países do mundo, a mutilação genital feminina é uma das formas de violência contra as mulheres que continua a persistir. Posto isto, questionámos Ana se, na condição de um dia ser mãe, irá permitir que façam o mesmo a uma filha? «Nunca!», responde…