Dizem que querem “apagar” o 25 de Abril. Que o Governo, por desrespeito à democracia, mandará silenciar a memória da Revolução. A verdade? Morreu o Papa Francisco. Portugal entrou em luto nacional. E, em respeito institucional, suspenderam-se cerimónias festivas. O essencial permanecerá: haverá sessão solene na Assembleia da República, o povo sairá à rua, a Avenida da Liberdade certamente encher-se-à de cravos e palavras de ordem. Abril não foi cancelado. Mas muitos aproveitaram para o transformar — outra vez — em arma de guerrilha ideológica.

O 25 de Abril não foi cancelado, mas continua a ser sequestrado. Há quem chore pela liberdade, mas não tenha escrúpulos em instrumentalizá-la. Entre o luto e a política, convém não confundir o respeito com o oportunismo.

Foi assim este ano. Mas, na verdade, é sempre assim. Um padrão que se repete a cada gesto da direita, por mais institucional que seja. Bastou um simples ajuste ditado pelo luto nacional para que se levantassem vozes acusatórias. Soaram os slogans de sempre: “fascismo nunca mais”, “a direita quer apagar Abril”. “O povo é quem mais ordena.”. Multiplicam-se se acusações de que existe uma agenda oculta para reescrever a História, como se adiar uma cerimónia fosse o prenúncio do regresso da repressão. Como se respeitar o Papa fosse desrespeitar o povo. Como se, em pleno 2025, celebrar Abril ainda tivesse de passar pelo crivo dogmático de um certo tribunal ideológico.

Portugal não conquistou a democracia para que fosse apropriada por uma parte. Em 1974 caiu o regime autoritário e começou um novo ciclo: plural, livre, diverso. Mas, nos anos que se seguiram, a narrativa dominante deixou pouco espaço para quem não cabe no guião revolucionário. O Processo Revolucionário em Curso foi tudo menos plural. E quando a democracia esteve à beira de ser substituída por um regime de partido único, foi a firmeza de militares e civis moderados — à direita e ao centro — que travou esse caminho. O 25 de Novembro de 1975 não anulou Abril. Salvou-o mesmo do totalitarismo.

Ainda assim, há uma insistência em tratar Abril como um exclusivo da esquerda. Como se celebrar o fim da ditadura só fosse legítimo para quem defende um modelo económico socialista, como se ser de direita fosse sinónimo de ser contra Abril. Como se as páginas da liberdade tivessem de ser escritas a vermelho e só a vermelho. Esta ideia — “eu sou mais Abril do que tu” — tem um reflexo directo do outro lado: o “eu sou mais Novembro do que tu”, como se a direita tivesse de encontrar a sua própria data fundadora. Ambas as atitudes são redutoras.

Também nós, que não vivemos o 25 de Abril mas vivemos a liberdade que ele nos deu, temos o dever de o proteger — e o direito de o celebrar sem pedir qualquer licença.

Por isso é que importa romper com este ciclo: impedir que o 25 de Abril seja transformado num território simbólico exclusivo da esquerda. A liberdade não tem donos. Não há herdeiros únicos da democracia. Todos os que respeitam os valores democráticos têm o direito — e o dever — de celebrar a data fundadora do regime que nos permite existir em diversidade. Mas isso exige maturidade cívica: deixar de medir abrilismo com base no alinhamento partidário.

A verdade é que este episódio recente não é sobre o Papa, nem sobre o calendário. É sobre poder simbólico. É sobre quem pode falar em nome da História. É sobre quem pode subir ao palanque da moral democrática. E aí, a tentação sectária continua demasiado viva.

O Estado é laico — como deve ser — mas não é laicista. A laicidade democrática não se confunde com indiferença ou hostilidade perante figuras que representam valores universais. Respeitar o Papa Francisco não é um gesto religioso, é um gesto institucional e civilizacional. Só num certo radicalismo ideológico é que isso se transforma num desconforto político.

O Papa Francisco, homem de paz, seria o primeiro a lembrar que a liberdade não se suspende — mas também não se instrumentaliza. É curioso, aliás, que aqueles que são tão velozes a aplaudir e invocar o Papa quando lhes convém, aproveitem agora para revelar o seu anti-clericalismo. A sua morte deveria ter sido vivida com respeito, e não usada como pretexto para uma nova ronda de acusações entre portugueses. Nem ele cancelaria o 25 de Abril, nem aceitaria vê-lo reduzido a uma bandeira de trincheira.

Portugal precisa de mais Liberdade — com letra grande — mas também de mais maturidade democrática. Precisamos de celebrar o que nos une sem medo de reconhecer o que nos distingue. Porque só quando aceitamos a liberdade dos outros é que podemos viver plenamente a nossa. E isso — mais do que qualquer grito partidário — é o que faz a democracia andar e continuar.

É essa a escolha que temos pela frente: continuar a usar Abril como arma ou elevá-lo como casa. Porque a Liberdade não é uma trincheira — é um chão comum. E ou a pisamos juntos, ou deixamos que ela se afunde sozinha.

Por isso, vale a pena dizê-lo com toda a clareza: O 25 de Abril não foi cancelado. Nem o será. Mas continuará a ser usado como bandeira de uns contra outros se não formos capazes de o libertar dessa trincheira. A Liberdade é demasiado valiosa para ser propriedade de uma facção ou de uma geração. Não é um exclusivo de quem a reivindica mais alto, nem uma conquista com pedigree político. Não é uma conquista com cartão de militante. É um legado de todos. É um bem comum. E é na convivência das diferenças que ela se regenera.