No ano de 1953, queríamos chegar a um compromisso com a Irmandade Muçulmana, se eles se demonstrassem razoáveis. Encontrei-me então com o líder da Irmandade Muçulmana e ele sentou-se comigo e fez-me os seus pedidos. A primeira coisa que me pediu foi que o hijab fosse obrigatório no Egipto, e que todas as mulheres que andem na rua tenham de usar a tarha.”

No meio de risos, um homem na audiência grita: “ele que a use!”. Mais risos. Isto não é uma discussão no Ocidente. É um discurso de Gamal Abdel Nasser, o líder egípcio que tinha acabado de nacionalizar o Canal do Suez. Nasser prossegue:

Eu disse-lhe que cada pessoa na sua própria casa decide as suas regras. E ele respondeu-me que não, que eu, como líder, era responsável. E eu disse-lhe: ‘O senhor tem uma filha na escola de Medicina, e ela não usa a tarha. Porquê? Se o senhor é incapaz de obrigar uma mulher – a sua filha – a usar a tarha, quer que eu sozinho obrigue 10 milhões de mulheres?!’

A audiência explode em aplausos. Isto foi no Egito de 1958. Uns anos depois, no Irão, as mulheres ganhavam o sufrágio, seis delas eram eleitas para o Parlamento e, em 1968, Farrokhroo Parsa tornava-se Ministra da Educação. Havia mulheres na polícia, no corpo diplomático, no serviço civil. Mas, dez anos depois, o regime iraniano caiu, e o país foi entregue a Khomeini. Em semanas, as mulheres estão nas ruas a protestar contra o novo dress code, mas o regime não lhes dá ouvidos. A primeira medida oficial de Khomeini é tornar o hijab obrigatório, reduzir a idade mínima de casamento para os nove anos, e revogar a Lei de Proteção da Família.

O controlo do corpo feminino e a opressão das mulheres são a questão fundacional da República Islâmica. O regime vê a liberdade feminina como uma “doença ocidental”, e a sua eliminação como essencial à preservação dos “valores” do Irão. O problema com esta lógica, claro, é que se desmonta sozinha. Vejamos o exemplo de Nasser: não é o Islão que é contra os direitos das mulheres, mas sim o fundamentalismo islâmico, que, ainda que mascarado conversão religiosa, é filho dos ideais revolucionários Modernos.

Aliás, Khomeini andou pela Sorbonne, onde bebeu grande parte das suas ideias revolucionárias. Sayyid Qutb estudou nos EUA. Como os marxistas e os neo-liberais, os islâmicos radicais estão convencidos de que poderão redimensionar a condição humana. O terror revolucionário é uma invenção Moderna: os horrores cometidos pelo Nazismo alicerçavam-se na crença futurista no Homem novo; a URSS foi uma tentativa de incorporar a ideia positivista de um mundo sem poder ou conflicto; a “War on Terror” americana foi animada pela crença de que o “capitalismo democrático” seria o único caminho para uma civilização universal. Durante a Guerra Fria, os movimentos religiosos no Médio Oriente foram financiados e armados contra os Soviéticos. Eis que o Islão radical incorpora os efeitos da globalização, como é evidente na tecnologia da Al-Qaeda e na utilização de instituições offshore e do mundo online por parte do Estado Islâmico. Não vem das trevas: vem da mecanização do Ocidente.

O que vemos nas ruas do Irão não é o grito “ocidentalizado” que o regime se apressa a denunciar. É uma tentativa de recuperar o que lhes foi roubado.

Há dois dias, uma mulher iraniana tirou o véu e despiu-se em público. Num país decente, isto talvez fosse um gesto sem importância. No Irão, é uma declaração de guerra. Porque, no Irão de hoje, o corpo feminino é território do Estado. E o hijab, longe de ser um símbolo de fé, é o emblema de uma tirania que sobrevive à custa de vigiar e controlar cada movimento das mulheres. Estas mulheres não estão a correr atrás de um “cosmopolitismo moderno”, mas de uma dignidade básica que as suas avós já tiveram. Querem o Irão onde havia deputadas, professoras, juízas. Um Irão que existiu.

E aqui está o cerne da questão: o grito de Mulher, Vida, Liberdade não é um eco do Ocidente. Cada mulher que recusa o véu, que desafia a “polícia moral”, é um golpe na República Islâmica, que não sobrevive sem a sua fachada de “moralidade”. Cada rosto descoberto, cada véu que cai, é a prova de que a República Islâmica se sustenta em bases frágeis, disfarçadas de devoção.

Esquecer estas mulheres é cair na narrativa do governo iraniano. Ahoo Daryaei, a mulher que desafiou o regime, e Mahsa Amini, cujo sacrifício incendiou uma geração. Estes nomes têm de ecoar para que o mundo entenda: a luta no Irão não é contra a fé. É pela liberdade e pela dignidade.

O verdadeiro Irão não é o da propaganda do regime, mas o das mulheres que recusam o papel de notas de rodapé numa tirania disfarçada de moralidade. São elas, com cada véu que deixam cair, que expõem a farsa e desnudam o regime apavorado pelo seu próprio povo.