Apesar de avanços significativos na inclusão de pessoas com deficiências sensoriais, a sociedade portuguesa continua, em alguns contextos, a operar com base em pressupostos errados quanto à capacidade funcional de indivíduos com deficiência auditiva. Um dos exemplos mais frequentes é a dúvida sobre a possibilidade legal de uma pessoa surda profunda conduzir. Trata-se de uma questão que, para além de técnica e legal, exige um olhar informado e humanizado. Este artigo visa esclarecer o enquadramento jurídico atual, contribuir para a literacia em saúde auditiva e promover uma abordagem mais inclusiva na avaliação da capacidade para conduzir.

A legislação em vigor

A habilitação legal para conduzir em Portugal é regulada pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho, que aprova o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC). Este diploma sofreu várias alterações, nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º 40/2016, de 29 de julho, e pelo Decreto-Lei n.º 151/2017, de 7 de dezembro.

O RHLC distingue dois grandes grupos de condutores:

  • Grupo 1: inclui os condutores de veículos ligeiros (categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE);
  • Grupo 2: inclui os condutores profissionais (categorias C, CE, D, DE, e subcategorias).

No que diz respeito às afeições auditivas, o anexo II do regulamento estabelece que:

“Os candidatos ou condutores do Grupo 1 com deficiência auditiva bilateral severa ou profunda podem ser considerados aptos, eventualmente com restrições, desde que comprovado clinicamente que são capazes de conduzir em segurança.”

No caso do Grupo 2, a mesma legislação é mais restritiva:

“A deficiência auditiva severa ou profunda constitui, em geral, causa de inaptidão para o Grupo 2.”

Contudo, o regulamento não é taxativo, admitindo avaliação caso a caso, nomeadamente quando há reabilitação auditiva eficaz (por exemplo, através de implante coclear). Essa abertura legal é essencial para garantir a equidade, assegurando que não são as limitações clínicas isoladas que definem a capacidade de uma pessoa para conduzir, mas sim a sua funcionalidade no contexto real.

Reabilitação auditiva e avaliação funcional

O conceito-chave para a interpretação destas normas é o de funcionalidade auditiva e não apenas o diagnóstico clínico. Uma pessoa com surdez profunda bilateral, mesmo sem audição funcional plena, pode beneficiar de tecnologias como próteses auditivas ou implantes cocleares, que lhe permitem adquirir percepção sonora suficiente para conduzir de forma segura.

O papel do médico otorrinolaringologista é aqui fundamental. Compete-lhe avaliar se, com ou sem auxílios tecnológicos, o utente consegue responder a estímulos do ambiente de condução, como buzinas, sirenes ou outros sons relevantes. Essa avaliação deve ser complementada com um relatório médico que ateste a aptidão funcional para conduzir.

É igualmente relevante considerar que a percepção sonora é apenas um dos muitos componentes da condução segura. A acuidade visual, os reflexos motores, a atenção ao meio envolvente e a capacidade de antecipação são fatores determinantes que, em muitos casos, estão totalmente preservados em pessoas com deficiência auditiva. Não raras vezes, condutores surdos desenvolvem estratégias compensatórias que lhes conferem elevado nível de segurança ao volante, nomeadamente a leitura labial em espelhos, maior atenção visual ao retrovisor e à sinalização rodoviária.

Exemplos práticos

  1. Maria, 42 anos, surdez profunda de nascença, sem implante coclear, usa prótese auditiva de última geração: com acompanhamento otorrinológico e adaptação correta da prótese, é considerada apta para conduzir veículos do Grupo 1, com recomendação de espelho retrovisor adicional.
  2. João, 35 anos, surdez adquirida aos 18, reabilitado com implante coclear bilateral: com audiometria funcional dentro de parâmetros seguros, é considerado apto para conduzir veículos do Grupo 2, após avaliação por equipa médica.
  3. António, 60 anos, sem qualquer tipo de reabilitação auditiva eficaz, com incapacidade de percepção sonora: pode ser considerado inapto para ambos os grupos, por não reunir condições de segurança.

Importância da literacia legal e da formação médica

A interpretação destas normas exige não apenas conhecimento jurídico, mas também competências clínicas e éticas. Importa que os profissionais de saúde estejam informados sobre os limites e possibilidades legais, evitando quer o facilitismo, quer a exclusão injustificada.

A existência de estigmas associados à deficiência auditiva pode conduzir a decisões precipitadas, como a exclusão automática de candidatos surdos à carta de condução. Esta prática, além de injusta, é discriminatória e contraria o espírito da legislação portuguesa, que valoriza a avaliação individual e funcional. É fundamental garantir que os médicos estejam atualizados quanto ao quadro legal e que colaborem com entidades como o IMT na definição de critérios justos e rigorosos.

Do mesmo modo, é urgente capacitar os utentes com deficiências auditivas com informação clara sobre os seus direitos, promovendo uma cidadania ativa e informada. A literacia legal é parte essencial da autonomia pessoal e da integração social. Saber que a lei protege a possibilidade de conduzir é um passo determinante para que cada indivíduo possa fazer valer os seus direitos.

Reflexão final

O direito à mobilidade não deve ser condicionado por estigmas ou desconhecimento. A legislação portuguesa admite a condução por pessoas com surdez profunda, desde que exista uma avaliação médica positiva da sua capacidade funcional. Cabe-nos, como sociedade, assegurar que essa possibilidade é conhecida, aplicada com critério e promovida como parte integrante da inclusão plena.

A inclusão verdadeira começa com conhecimento. Cabe aos profissionais, à sociedade civil e às instituições públicas garantir que todos os cidadãos, independentemente das suas limitações sensoriais, tenham acesso igualitário aos seus direitos. A possibilidade de conduzir, quando sustentada por avaliação médica especializada e consciente, é apenas uma expressão concreta da autonomia que todos devemos ter direito de exercer.

Referências legais e institucionais:

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