Se levarmos a sério os avisos dos serviços secretos dos Estados Unidos, este encontro não haverá em 2028. Se tomarmos como válida a informação dos departamentos de inteligência do país que acolherá os próximos Jogos, não se disputará esta partida em Los Angeles 2028. Ou, pelo menos, não nestas condições.
Segundo o que tem sido publicado nos órgãos de comunicação social norte-americanos, Washington acredita que 2027 é a data limite para haver uma invasão militar em larga escala da China sobre Taiwan, o momento em que as ameaças se concretizarão e haverá o que, para todos os efeitos, será uma anexação.
Esta eliminatória dos quartos de final do torneio feminino por equipas de ténis de mesa pode ser, dentro de pouco tempo, vista como o fim de uma era, um trocar de bolas que antecedeu os dias dos tanques e dos navios de terra, um inofensivo jogo antes de coisas mais agressivas virem à tona.
Mas comecemos por uma questão: como chamar à equipa que defronta a China? As suas jogadoras são de Taiwan, país que opera como entidade política soberana, com diplomacia, exército e bandeira próprias. Mas aqui, nesta arena no sul de Paris, neste micro-clima olímpico, Taiwan não se chama Taiwan e não joga com a bandeira de Taiwan.
Taiwan é, para efeitos olímpicos, a China Taipei. Taiwan é, para efeitos olímpicos, um país com uma bandeira branca e não com as suas cores vermelha e azul. Uma neutralidade olímpica que, na verdade, é um assumir de posição, alinhada com a política de Pequim, que considera a ilha uma província sua, a qual deve ser reunificada. Se for necessário fazê-lo pela força, far-se-á.
Se dúvidas houvesse quanto a este “se necessário”, os últimos meses dissiparam-nas. Em janeiro, Taiwan — peço desculpa pela ousadia em escrever este nome enquanto teclo dentro de um recinto olímpico, senhor Thomas Bach — elegeu William Lai como novo presidente. Problema? A China considera-o um “separatista”, com Pequim a mandar uma mensagem clara aquando da tomada de posse de Lei: “De cada vez que o movimento independentista nos testa, iremos um passo mais longe com as nossas contramedidas, até que a reunificação completa da pátria seja alcançada.”
Desde a eleição do novo presidente de Taiwan, a China não tem sido propriamente subtil nos recados que manda. Realizou um exercício chamado Joint Sword-2024A, que incluiu um vídeo com uma simulação de uma invasão Chinesa a Taiwan a partir do mar; aumentou consideravelmente as manobras militares em torno do território de Taiwan, anunciando que estas têm como objetivo testar a capacidade para “tomar o poder” na ilha; Pequim anunciou que quaisquer “atos separatistas” seriam “severamente punidos”, indicando mesmo, em maio, que estará a considerar “condenar com a pena de morte” quem “promovesse a causa do separatismo de Taiwan”.
“Vamos celebrar o espírito olímpico em paz, como uma humanidade em união e concórdia, unida na diversidade”, disse Thomas Bach, presidente do Comité Olímpico Internacional, na cerimónia de abertura dos Jogos. Pois bem, aqui estamos nós, num belo jogo de ténis de mesa a decorrer numa mesa preta com limites cor-de-rosa. Em assuntos menores, ainda há seis semanas o ministério da defesa de Taiwan denunciou ter detetado 41 aviões chineses em manobras em redor da ilha.
Não parece haver muita concórdia olímpica entre estas duas equipas. Os cumprimentos são frios e meio a fugir, indiferentes tanto no jogo de pares como no encontro de singulares. Há duas mesas nesta arena e a rapidez com que as jogadoras dos vizinhos asiáticos se cumprimentam contrasta com os calorosos abraços que, mesmo ao lado, os mesa-tenistas das equipas do Brasil e de França trocam.
A vitória chinesa na eliminatória nunca está em causa. O contundente 3-0 é o marcador final que todos anteviam.
Esta modalidade é território chinês, numa hegemonia como poucas na história dos Jogos: desde a estreia, em Seul 1988, quando o ténis de mesa entrou para o programa olímpico, a China ganhou 32 das 37 medalhas de ouro que foram atribuídas. Cumprindo esta tradição, não espanta que o resultado seja uma vitória rápida e gorda. Quando o trio que compõe a tua equipa é formado pela líder do ranking mundial (Yingsha Sun), pela 2.ª da hierarquia (Meng Chen) e pela 3.ª (Manyu Wan), bem, não há muito em disputa.
No pavilhão há muitas bandeiras chinesas. As mesa-tenistas da potência maior são muito aplaudidas à entrada, são seguidas por dezenas de jornalistas, os seus pontos são festejados com euforia e toques de histeria. Não há nenhuma bandeira de Taiwan, não há qualquer referência de apoio a Taiwan ou à China Taipei ou a qualquer forma que desagrade a Pequim e ao COI de chamar esta entidade desportiva.
A China é, em termos de área, cerca de 267 vezes maior que Taiwan. Tem quase mil milhões e meio de pessoas, enquanto Taiwan não chega aos 24 milhões de atacantes. Neste palco, essa desproporção ganhou contornos visivelmente nítidos.
Na partida de singulares, enquanto I-Ching Cheng, a melhor jogadora de Taiwan, ia fazendo o que podia contra Yingsha Sun, a líder do ranking, as colegas da taiwanesa iam aplaudindo, tentando encorajá-la, dar-lhe ânimo enquanto defrontava aquele colosso cheio de efeitos difíceis de detetar até em câmara lenta. Sentada a uns cinco metros de distância, a equipa chinesa que assistiu ao duelo estava de braços cruzados, celebrando os pontos conquistados como parte de uma inevitabilidade cósmica.
As saudações entre bancos foram, somente, as protocolares, no início e no fim, uma realidade oposta ao que se viu noutros encontros do torneio de ténis de mesa.
Há, claro, um olho que nunca dorme que também olha para isto. Chama-se Estados Unidos da América e sabe que, na corrida pelas medalhas, tem nestas mesas vários ouros garantidos para o rival. Em Tóquio, a China ficou somente a uma medalha do Team USA e, agora, a corrida está, outra vez, ao rubro.
À entrada para a reta final dos Jogos, o medalheiro indica, a poucos instantes do fim desta partida — é importante dar esta nota, porque estas contas estão sempre a desatualizarem-se —, 24 ouros para os EUA e 22 para a China. Esta disputa é, na verdade, um embate à distância, não sendo muitos os verdadeiros casos de confronto na mesma prova. Do lado norte-americano, por exemplo, há cinco ouros em atletismo, onde os chineses só têm um, e da parte asiática há 10 ouros entre tiro e saltos para a água, modalidades onde os EUA só somam um triunfo olímpico.
Esta arena do ténis de mesa é dos sítios menos yankee destes Jogos. Em quase todos os recintos há gente vestida com estrelas e riscas, assumindo o vermelho, o azul e o branco, mas aqui não há ninguém assim. Uma distância desportiva que contrasta com a presença diplomática, militar e política — e económica, ângulo fundamental em Taiwan, descrita pelo Financial Times como “a economia indispensável”.
Os EUA estão legalmente obrigados a dar armas defensivas a Taiwan e o Joe Biden já disse que o país ajudaria a nação insular caso houvesse uma agressão chinesa em larga escala. A questão Taiwan tem sido um dos pontos mais tensos da relação sino-americana.
Em 2022, após uma visita de Nancy Pelosi a Taiwan, a China respondeu com duras demonstrações de força, particularmente através de exercícios militares em redor da ilha; a 27 de julho, curiosamente um dia depois da cerimónia de abertura dos Jogos, Antony Blinken manifestou, numa reunião com o seu homólogo chinês, Wang Li, preocupação com as “ações provocatórias” da China sobre Taiwan.
William Lai, o presidente de Taiwan, tem apelado à “boa vontade de Pequim”, pedindo que o seu vizinho escolha “o diálogo em vez da confrontação”. Do outro lado, há um discurso cada vez mais duro, talvez o prenúncio de água num escalar de consequências imprevisíveis.
O jogo termina. As jogadoras de ambas as equipas cumprimentam-se formalmente, sem abraços ou sorrisos. Não há tensão latente, é mais indiferença. Talvez, seguindo os segredos que se sussurram não discretamente em Washignton, nos próximos Jogos façam todas parte do mesmo comité olímpico.