É um ato de desdém para com o tempo que tenhamos que arranjar maneiras para o fazermos passar. Um entretenimento é um ilusório catalisador de minutos e um encobrimento do receio que há em viver aqueles momentos entre a hora de um acontecimento e o agendamento do seguinte. Já sabemos como é a trapaceira raça humana, até o pingar dos segundos quer enganar.
Uma das mais afamadas ocupações de tempos mortos é aquele desafio de observação em que, lado a lado, estão duas imagens que são gémeas falsas. O objetivo é descobrir o número total de diferenças mencionadas no enunciado. Em alguns casos, identificar aspetos em que uma fotografia não respeita a outra é simples. Noutros, nem tanto.
Era este jogo que os adeptos do Sporting, refastelados na respetiva cadeira no Estádio José de Alvalade, estariam a fazer. A 4.ª eliminatória da Taça de Portugal, contra o Amarante, era a primeira ocasião para verem a equipa a ser comandada por João Pereira, o novo treinador do combinado verde e branco. A memória do que Ruben Amorim deixou de bem feito não legitimava grandes alterações por parte do seu sucessor. Além disso, por muito que quisesse passar o plantel pelas varetas de uma batedeira, João Pereira teria pouca margem para o fazer devido à falta de tempo de treino com os jogadores internacionais que regressaram a Alcochete em data demasiado próxima da realização do encontro da Taça de Portugal.
Quem fez viagens intercontinentais para representar as seleções ficou automaticamente no banco. Gyökeres juntou-se igualmente aos suplentes, coisa rara para o goleador insaciável. João Pereira montou assim um 3X4X3 (sim, o sistema tático do Sporting manteve-se) com peças provisórias. É pouco credível que, no futuro, sejam Iván Fresneda (à esquerda) e Ricardo Esgaio (à direita) a dar corpo às laterais do esqueleto tático dos leões.
Ainda que se trate de uma versão 1.0 do projeto do técnico de 40 anos, foi sobretudo nos flancos que se vislumbraram, com a ajuda de uma lupa, algumas diferenças face a Ruben Amorim. Quer Fresneda, quer Esgaio, atacaram com maior afoiteza a zona central da área na iminência da erupção de um cruzamento do lado oposto. De resto, foi nessa zona que Esgaio marcou o segundo golo do Sporting, num lance que resumiu as nuances implementadas.
A minúcia escrutinou que talvez nunca como neste jogo Daniel Bragança tenha invadido tanto o interior da grande área, chegando inclusivamente a tirar cruzamentos junto à linha de fundo. Foi dessa maneira que assistiu Ricardo Esgaio para o referido golo e também Marcus Edwards. Alheio à liberdade do médio, que anteriormente talvez ficasse mais especulativo à entrada do último terço para travar possíveis transições, não é o maior encolhimento dos centrais exteriores.
A vitória (6-0) do Sporting frente ao segundo classificado da série A da Liga 3, que reúne as equipas sediadas mais a norte no país, viveu de uma comunhão entre as ideias para o futuro a florescer e o aproveitamento de dinâmicas solidificadas anteriormente. Nesse meio-termo, tal como acontecia com Amorim, os pseudo-extremos recalcaram o protagonismo a jogar entre linhas. Marcus Edwards – bons olhos o vejam – e Francisco Trincão demoliram o Amarante treinado por Álvaro Madureira. Rodando sobre si e ziguezagueando entre os adversários, o inglês inaugurou o marcador. Trincão serviu várias colheres de açúcar aos companheiros, uma das quais Conrad Harder transformou em assistência. Os papéis inverteram-se na segunda parte quando foi o internacional português a finalizar a passe do ponta de lança.
Em todo o encontro, o Amarante teve apenas uma quase oportunidade e logo na primeira parte. Bright Godwin arqueou um cruzamento traiçoeiro entre Vladan Kovačević, guarda-redes verde e branco, e a linha defensiva. Matheus Reis teve necessidade de deslizar no relvado antes que Ká Semedo se pudesse apoderar da bola.
A ver o jogo de um posto de controlo, o Sporting promoveu as estreias de João Simões e Henrique Arreiol na equipa principal. Das caras mais conhecidas, Geovany Quenda – cuja não utilização ao serviço de Portugal tem dado que falar –, Gyökeres e Morita também tiveram minutos. O portento sueco, deixando-se guiar pela corrente de bons desempenhos, não tardou a deixar dois livres a tilintar no poste da baliza de Didi. Só de grande penalidade o nórdico chegaria ao seu rotineiro golo.
A genética herdada de Ruben Amorim continua muito presente nos leões. No entanto, João Pereira começou a revelar traços da sua identidade própria. Com ela juntou o Amarante ao Portimonense na lista de vítimas do Sporting na Taça de Portugal. Mais importante, o Estádio de Alvalade disse estar “lado a lado” consigo e não há nada que caia melhor a uma transição pacífica.