A internet massificada era uma miragem de ficção científica, as redes sociais uma ideia por brotar. O mundo girava a outro ritmo, não devagar mas com outro vagar, a pressa mais antiga a escavar por novidades e sem a redoma insaciável de saber tudo e sabê-lo o quanto antes. Os canais de TV eram poucos, os campeonatos no estrangeiro mais inóspitos e um Campeonato do Mundo ainda era uma montra do desconhecido, até no caso de uma seleção já três vezes campeã do mundo.

Quando a Itália dos seus estádios austeros, remodelados e magnificados em enormes peças de betão, recebeu o Mundial de 1990, o seu futebol representava o topo, o lugar onde os melhores queriam ir: Diego Armando Maradona dava um deus para Nápoles idolatrar; o AC Milan venerava o seu trio de holandeses (Gullit, Van Basten e Rijkaard) e o Inter a sua tríplice de alemães, Matthäus, Klinsmann e Brehme; a cor violeta da Fiorentina enternecia por Roberto Baggio e a AS Roma vibrava na ressonância do bigode de Rudi Völler. A Série A era o sítio para se estar. E a Juventus, ainda convalescente da partida do mito Michel Platini, tinha ido à Sicília buscar um remédio para essa ressaca.

Neste futebol ainda antigo, Salvatore Schillaci era um avançado à antiga, de processos simples, apto e pronto a rematar qualquer bola que lhe fizessem chegar, um tipo prático em quem uma Juventus em reconstrução arriscou, comprando-o ao Messina, da segunda divisão italiana, onde ele florescia sob a mão de Zdeněk Zeman, o nómada checo que então já se aprontava para ser um treinador de culto em Itália. Vindo da pobreza paupérrima de San Giovanni Apostolo, um dos bairros mais pobres de Palermo, Schillaci já tinha 26 anos.

Esta quarta-feira, morreu aos 59, tão cedo na vida por contraste ao seu tardio aparecimento no núcleo da atenção no futebol. Quando, em 1990, o selecionador italiano Azeglio Vicini escolheu os convocados para o Mundial que o país ia acolher, pouco gente se incomodaria se o Schillaci fosse preterido apesar dos 15 golos que deixara nessa Série A, só atrás de Marco Van Basten, Roberto Baggio e Diego Maradona. Bem guarnecida de avançados, a Itália resplendia de ameaça às balizas com um Gianluca Vialli ainda com cabelo, a promessa da juventude de Baggio ou a calma de Roberto Mancini.

Mas o siciliano ‘Totò’ seria chamado, em boa hora.

Schillaci entrou no Mundial com apenas uma internacionalização pela squadra azzurra, indiferente nas preferências de uma nação, mas agarraria no torneio pelos colarinhos, bruto e à força, um herói inesperado vindo do lado cego das expetativas como hoje é cada vez mais raro avistar no futebol.

Ficou no banco na estreia, contra a Áustria, à espera, feliz só de estar ali. Entrou em campo com 16 minutos de sobra. Reza a história que Stefano Tacconi, seu colega na Juventus, lhe disse que seria de cabeça que Schillaci faria um golo - estranho, dado que o avançado nunca o fez durante toda a época. Fê-lo ali, na profética estreia italiana no Mundial. Ainda seria suplente no jogo seguinte e não mais até ao fim, deixando golos em todas as cinco partidas seguintes na caminhada da Itália até às meias-finais e ao eventual 3.º lugar, vencendo a Inglaterra na decisão de quem completaria o pódio. Os seis golos deram a Schillaci a bota de ouro do Mundial e a TV, então único fomentador de fenómenos de popularidade, captou sempre os festejos loucos de um homem que esbugalhava os olhos durante a euforia e abanava os braços descontroladamente.

O herói do Itália'90 não foi o furibundo Maradona, a soltar impropérios na ‘sua’ Nápoles quando o estádio assobiou o hino argentino, o excêntrico Paul Gascoigne que dava o requinte à Inglaterra, nem o ambidestro Andreas Brehme que marcou o golo da conquista do Mundial para a Alemanha. Foi o remoto avançado da camisola bem dentro dos calções que, ao ser comparado com Paolo Rossi, lenda da conquista italiana do torneio de 1982, apenas disse: “Ele era um campeão. Eu sou um tipo comum e humilde. Só espero poder continuar a fazer o que tenho feito.”

A chama de ‘Totò’ ficaria guardada no torneio, não como a de Roger Milla, o extrovertido camaronês que convidava a bandeirola de canto a dançar a cada golo - ainda marcaria no torneio seguinte, nos EUA. Aos seis golos em sete jogos seguiu-se apenas mais um nas oito partidas que ainda faria na seleção italiana. O nome de Schillachi ficar impregnado no torneio de 1990 vincou a sua evidência com o passar dos anos. Na temporada seguinte, apenas fez oito golos (apesar da companhia de Roberto Baggio, comprado pela Juventus), sete na posterior e outros sete na que lhe sucedeu, já no Inter de Milão, antes de rumar ao Japão para fechar o estore da carreira.

Ross Kinnaird - EMPICS

Nas quatro temporadas no Júbilo Iwata houve fartura de golos até 1997, quando o avançado se retirou, quase incógnito, a ser figura no país que lhe chamava “Totò-san”, lá nos subúrbios da bola onde a TV não chegava. O seu fim de chuteiras nos pés a tocar na mesma nota ouvida durante a sua erupção.

Salvatore Schillaci terá sido, porventura, o mais inesperado melhor marcador de um Campeonato do Mundo quando o torneio, o maior feiticeiro para todo o sempre de histórias e fabulações no futebol, ainda se movia quase só pela mística de congregar o desconhecido. Morreu o “bomber das Noite Mágicas”, assim o descreveu a Gazzetta dello Sport, a lembrar o quão representativo do povo, das esperanças anónimas que habitam ruas, casas e pastos de um país, era o homem baixinho, cabelo curto a disfarçar a careca crescente, que corria com as pernas para trás e viveu um sonho de verão.

A vida de ‘Totò’ sob os focos da fama concentrou-se naquele Mundial. Fora dos relvados, passou o tempo entre reality shows e programas superficiais na mesma caixa que o mostrou ao mundo em 1990. A sua perícia com uma bola não será lembrada, o que representou com ela ecoará para sempre. “Ele deixou uma passagem muito profunda, uma escrita frenética e indelével nas páginas desse romance popular que é o futebol”, escreveu o mesmo jornal italiano, no texto em que explica o incalculável valor de Schillachi na memória coletiva de um país - “foi, simplesmente, o homem em quem toda a Itália se viu refletiva durante um verão inesquecível.”