O ciclismo é um excelente campo para metáforas. Os esforços são grandes, os feitos impressionantes. Há montanhas reais e montanhas como imagens e Tadej Pogacar abocanha-as todas. A etapa 19 do Tour era uma espécie de tira-teimas, uma última oportunidade para a Visma e Jonas Vingegaard algo tentarem, mas o momento do esloveno é tal que nem sequer tem o obrigado João Almeida, o seu derradeiro escudeiro, a trabalhar tanto assim. Ele vai sozinho, parece até que vai sem esforço, com a leveza de quem está infinitamente superior, que não há montanhas altas o suficiente para o parar.

Já são quatro as vitórias de Pogacar no Tour, que venceu a Volta a Itália por quase 10 minutos e prepara-se para ganhar a sua terceira Volta a França não por números tão estratosféricos, mas quase: já são 5,03 minutos de vantagem para Vingegaard, uma enormidade numa prova como a Grande Boucle, onde este ano estão todos os melhores dos melhores.

A etapa 19 tinha como atrativo a passagem pelo Cime de la Bonette, a mais de 2.800 metros de altitude, o mais perto das nuvens que o Tour já andou e uma montanha que não figurava na prova desde 2008. Não era no final, mas sim a meio da tirada, retirando algum do drama, mas ainda assim era ali que os sinais seriam dados. E os sinais da Visma não foram bons: com Matteo Jorgenson e Wilco Kelderman no grupo da frente, esperava-se que estes homens fossem o apoio para um possível ataque de Vingegaard, mas esse ataque não apareceu. E quando Jorgenson desferiu o ataque na última montanha do dia, Isola 2000, uma 1.ª categoria, percebeu-se que Vingegaard não estava em condição para fazer cócegas a Pogacar - a Visma, para limpar a imagem, ia atrás da vitória de etapa.

MARCO BERTORELLO

Mas nem uma coisa nem outra, porque há um canibal na estrada. Eddy Merckx que se cuide, alguém lhe quer roubar a alcunha. A cerca de 8 quilómetros da meta, e quando João Almeida se preparava para entrar ao serviço no comboio da UAE Emirates, Pogacar olhou para trás uma, duas vezes. Terá visto os olhares de pânico e sofrimento nos adversários e seguiu por ali fora, nem precisando do colega português para puxar - agradece Almeida, que assim guarda forças para defender o seu 4.º lugar. A resposta de Vingegaard foi ténue e, de momento, talvez até mais motivada pela vontade em não oferecer o 2.º lugar a Remco Evenepoel, esse sim, bem mais combativo.

Pogacar foi alcançando um e outro dos ciclistas que pontuavam a última subida e a dois quilómetros do fim ultrapassou Matteo Jorgenson, frustrando a Visma, dando o derradeiro sinal de que não há ninguém tão forte como ele em 2024. Evenepoel e Vingegaard chegaram apenas 1.42 minutos depois.

Nice, onde este ano acaba o Tour, devido aos Jogos Olímpicos, já espera Pogacar para a consagração de domingo. A etapa de sábado ainda tem alguma montanha, mas até parece adaptar-se mais às características do esloveno do que às dos rivais.

Vingegaard, que há dois meses estava numa cama de hospital com um pulmão colapsado, não estará na sua melhor condição e a única pergunta que fica no ar neste Tour é se de facto poderia ter feito melhor. No final da etapa, enquanto o esloveno estava fresquíssimo, o dinamarquês apoiava-se na mulher, depois nos colegas, tentando equilibrar a respiração, como se toda a tirada lhe tivesse pesado 100 vezes mais do que a Pogacar. E é por isso que, apesar da pergunta, a vitória de Pogacar, a confirmar-se - só uma fatalidade não lhe permitirá vencer -, é incontestável.