
Na chuvosa intempérie de Guimarães, durante bastante tempo houve uma equipa mandona no jogo, escorreita nos seus processos e as suas peças movidas a certeza: tinha o médio mais recuado, o coloquial 6, a deslizar nas costas da primeira pressão, desengatilhando as saídas de bola de trás com simplicidade; os outros dois meiocampistas orbitam na sua frente para o trio combinar até colocarem um passe no apoio frontal do avançado, esperto a surripiar-se do alcance dos marcadores; os extremos apresentavam-se destemidos e descarados, indo para cima dos laterais; e os defesas eram calmos a filtrarem os primeiros passes.
Ao minuto e quinze segundos, essa equipa fez um cruzamento supimpa, tenso e com efeito, cair nas costas do lateral esquerdo adversário, ao segundo poste, onde o extremo acerta com o pé nas orelhas da bola. Antes dos 10’ tinha jogadores a esbracejarem contra o árbitro, barafustando por o guarda-redes adversário demorar no pontapé de baliza e, só aos 18’, viam o avançado contrário tocar pela primeira vez na bola dentro da sua área, um toque cuja indiferença contou a história: veio de um corte, em carrinho, do defesa central, a redimir um outro corte que foi na direção indesejada.
Deixando-nos do quem é quem, foram 20 minutos não avassaladores, mas contundentes, de um forte Vitória, decidido a encostar o adversário à sua baliza, a pressionar alto, a querer ter os seus médios a ditarem as operações sem demasiadas cantilenas ao ouvido da bola. Usando o simplismo de um lugar-comum, era um Vitória a jogar à grande, com pretensões de grande, a querer o protagonismo de um grande no campo. E que findo esse tempo teve a cabeça de Filipe Relvas, no alto de um canto, a extrair do instinto de Trubin a defesa da noite à queima-roupa, antes do embalado Nélson Oliveira, ainda fora da área, aferir a atenção do ucraniano.
Contados aqueles 20 minutos de uma equipa a reclamar os focos, a que marcou foi a outra.
Na primeira vez que superou a pressão subida dos vitorianos, o Benfica chegou à baliza atalhando caminho, a precisar de poucos passes, feita uma equipa predisposta a conspirar com as intenções alheias como fizera, há um par de semanas, no Dragão. Florentino olhou para a frente, cortou um passe rasteiro para Pavlidis, ato que desmontou o assalto vimaranense. Recuado para servir de apoio, receber e lançar Aktürkoglu, na esquerda, onde o turco esperou pela corrida de Kökçü para servir o conterrâneo. Bruno Varela pôde contra o seu remate, mas sem impedir a recarga do avançado grego. O 26.º golo da época de Pavlidis não soou o toque de despertador para os encarnados, antes confirmou a certidão de uma postura.
O Benfica não desfez o bloco médio, nem projetou os seus para a frente ou se prestou à ousadia a sair da área com passes curtos. Os pontapés de baliza de Trubin continuaram longos, as bolas abandonavam Otamendi e António Silva muito pelo ar, Kökçü olhava no passe diretamente para os apoios de Pavlidis e este queria pôr Aktürkoglu a correr na profundidade. A intenção era esta. O Vitória queria jogar, os encarnados estavam confortáveis a que tentasse.
Era um jogo de comodismos, mesmo que ambivalentes nas expetativas. Händel e Tiago Silva faziam por mandar na bola, tentavam triangulações com João Mendes com o claro intuito de lançar Gustavo Silva na esquerda, contra o desamparo de Tomás Araújo face ao atraso das ajudas de Di María. Mesmo assim, o melhor do argentino até seriam as quantas vezes que recuperou a bola: no usufruto dela, espremeu-se um quase nada seu, teimoso a insistir em passes longos da esquerda para a direita, a querer virar o centro do jogo como um quarterback exibicionista. Pouquíssimo contribuíra no ataque quando, aos 50’, se agarrou a uma coxa e pediu a substituição.
Ao intervalo havia paridade nos remates na baliza (três) e pobreza partilhada nos passes certeiros (56 do Vitória, 54 do Benfica), ilustrações de um jogo aguerrido, com fumarada de tochas nas bancadas, barulho diverso, mas, de jogo jogado, fazia-se mais dos latidos daqueles foguetes de criançada no carnaval. O Vitória não largaria a iniciativa, o Benfica apenas lá para meio da segunda parte começaria a ter posses de bola mais largas na metade adversária.
O predomínio dos vimaranenses na bola acentuou-se quando Luís Freire desacelerou a equipa, tirando Gustavo Silva para lhe dar um quarto médio. Um mentiroso na esquerda, Nuno Santos reforçou a bola da equipa na bola com as suas incursões pelo meio, embora o crucial da sua contribuição não fosse na relva: por duas vezes cabeceou cruzamentos, ambos perigosos. Já sem gente para apressar as jogadas e trocar a velocidade dos processos, além de Chucho Ramírez na área, essa era a forma em que o Vitória redundava acabar as suas investidas.
A espera do Benfica junto à sua área, coeso no bloco, os jogadores próximos, tornou-se menos atarefada. O despejo de cruzamentos teve uma exceção, quando a receção-passe de João Mendes, espremido entre a multidão, deixou à mercê do avançado venezuelano a bola que ele rematou para se corrigir uma afirmação - agora sim, e espetacularmente, Trubin emendou a sua própria distinção, indo ao instinto buscar a parada da noite. O ucraniano ter saído de Guimarães com a defesa rainha e a sua herdeira será uma pista de que o Vitória dispôs das suas chances, o seu jogo não foi vazio de conteúdo, nem será de abdicar a convivência de tantos médios de qualidade em campo. Faltar-lhe-ão armas para lhe dar outro vazão nos derradeiros 30 metros e afastar a equipa da unidimensionalidade. E do soçobrar na eficácia: dos 17 remates, nenhum golo.
E ao Benfica, apontem-se dedos a estratégias, posturas ou intenções devido à vontade em se querer ver mais, sobrou conforto em apresentar-se desta forma. Apesar de Trubin, do perigo que teve na sua baliza, da menos bola usufruída e do menor número de remates, num plano a basear-se no recato os encarnados voltaram a encontrar vida. Pode não ser a mais deleitosa de assistir, será a apropriada ao olho que Bruno Lage deita ao plantel e ao uso que lhe pretende dar.
Sem médios que nutram o carinho adequado pela bola em ataque posicional além de Kökçü, coxa a equipa na largura por só ter um lateral carrilero (o problema físico de Tomás Araújo fê-lo durar, de novo, coisa de uma hora até ter de ser substituído) e juntem-se as dificuldades evidenciadas em ser dominante a ter a bola com calma, o Benfica prospera sendo assim: em esperar por adversários que se atrevem, em vê-los a tentar aprisioná-los e a entrarem nas ratoeiras de uma equipa que em Guimarães nunca se pôde descrever como nos primeiros parágrafos desta crónica, porque prefere a mordacidade dos matreiros.
Quando se esfumaram, em definitivo, as fumaradas da pressão do Vitória e se foi o seu combustível, o Benfica feriu o adversário sem piedade. No derradeiro quarto de hora ligou várias transições de área a área, lestas e incisivas, ‘matando’ os anfitriões em dois golpes. Na primeira jogada de chuteira em chuteira, Schjelderup mostrou-se ao centro para lançar Carreras na largura, o espanhol ter a raridade de sair do drible para fora e fuzilar a baliza entre Bruno Varela e o poste. Na segunda, mais uma vez houve um remate de Kökçü que suscitou uma recarga para Pavlidis. E outra correção: 27.º golo na temporada do grego. Era um 0-3 contra a equipa que não sofria golos em casa há cinco jogos.
A equipa que mais tempo jogou de forma mandona, pressionante e ostentadora da bola não foi o Benfica, sem tal ser sintoma de inferioridade. O proveito letal pertenceu aos encarnados, neles esteve a clareza de uma intenção e a execução mais eficaz de uma estratégia, porque “tudo é estratégia”, reconheceu Bruno Lage no rescaldo. Até o cartão amarelo que sussurrou a Florentino Luís que provocasse, ao demorar a bater um livre, quiçá também o visto pouco antes por Ángel Di María, no banco, por palavras. Se é bonito? Não. Se todos o fazem? Certamente.
O argentino e o português vão cumprir suspensão no próximo jogo, contra o aflito AFS, portanto encarado como uma missão menos complicada, logo dispensadora das valias do médio que vira polvo e ganha tentáculos dentro desta postura coletiva de recuar o bloco e agrupar jogadores. O campeão do mundo teve o complicómetro de bateria cheia em Guimarães e as transições encarnadas respiraram melhor quando tiveram o apeadeiro de Schjelderup. O Benfica não terá adversários, nem neles características e formas de jogar, para encarar todas as partidas que lhe restam com esta abordagem. Mas ser a equipa que espera, a que gosta de espreitar ataques rápidos, vai-lhe dando proveitos.