O corpanzil de Viktor Gyökeres está mais à direita da área, tem um adversário preso às suas costas, a bola vem, o sueco ajeita-a com o exterior da chuteira direita. É a receção com menos superfície de pé e mais dificuldade, mas o sueco roda, quem o marca não tem como evitar ser arrastado com ele, abre-se uma nesga, o abominável aproveita e remata uma tentativa frouxa, que faz a bola parecer um respingo. O relógio era petiz, tinha 13 minutos, era a primeira tentativa do Sporting à baliza e forçado pelo mastodonte de avançado que se tinha de a ver com a maralha de corpos a rodeá-lo.
O inofensivo lance representava o quão inócuo o Sporting tinha sido e continuaria a ser, salvos um ou outro espirro vindouros, uns atchins individuais a tentarem estremecer uma equipa inerte. Antes e depois do seu tímido remate, Gyökeres foi engolido pela confusão, a sua estampa entroncada presa entre a última linha de cinco homens do Santa Clara, os seus olhos azuis abertos mas sem verem corridas das suas ao longe, no espaço, a galope, limitando o seu semblante loiro e esquálido a chocar com os centrais, estar de costas para a baliza, disputar segundas bolas e quase estar parado à espera que um companheiro o tentasse encontrar com um passe previsível. O jogo não tinha Gyökeres, antes uma sombra do sueco.
A figura do seu portentoso avançado não explicava tudo, mas, vetado a estar em situações que não o favoreciam, evidenciava o que seria um Sporting a roçar o irreconhecível em Alvalade, durante a primeira parte de um jogo que debatia com a história: em caso de vitória, seria a 12.ª seguida e o melhor arranque de sempre no campeonato.
Desde cedo, essa cenoura afastou-se da mira de uma equipa a complicar a própria vida. Usurpando a bola, fazendo avançar os centrais a linha de meio-campo ou para lá dessa fronteira, em posse o Sporting demonstrava maior manápula de João Pereira no seu método: com Hjulmand na base, Daniel Bragança aproximava-se para ajudar no desenho de jogadas, com Edwards e Trincão por diante, a espreitarem espaços interiores, todos eles ora dispostos em losango ou quase num quadrado. A intenção era notória, os leões queriam inventar combinações por dentro, juntar ali os seus inventores, e fomentar ligações curtas.
Perra de dinâmicas, a ideia não funcionou. Os jogadores passavam a bola com lentidão ou, quando não a tinham, pediam-na na mesma linha (Trincão no mesmo perfil de Edwards) e ninguém ameaçava a linha defensiva adversária com pequenas desmarcações ou ataques ao espaço (movimentos típicos em Bragança quando em Alvalade ainda estava quem nós sabemos).
Esta falta de acutilância combinava com a coesão do bloco do Santa Clara, disposto num 5-4-1 colado à sua área para tirar a Gyökeres a savana de espaço que mais lhe apraz e com os seus jogadores próximos uns dos outros, a fechar linhas de passe ao centro. A reação do Sporting às perdas de bola era rápida e até as recuperava rapidamente, rara foi a vez que os açorianos, em jogo corrido, chegavam em condições a Safira e dava protagonismo aos seus médios. Pouco atacavam, mas o conforto era bastante.
Fora um remate extemporâneo de Matheus Reis, na área, além de um raide de Catamo que cruzou a bola em que Trincão, sozinho na marca de penálti, não acertou com a cabeça, o Sporting nada criou. Era uma pálida imitação sua, um holograma parecido nas feições em que não se apalpava a equipa de há poucas semanas, um coletivo sem a cilindrada habitual. E quando o Santa Clara bateu um pontapé de baliza banal, longo e para a frente, pequenos erros fundiram para originarem um imbróglio.
A Safira foi permitido receber a bola no peito, sem incómodos, para tabelar com um companheiro no meio da passividade leonina e depois lançar Vinícius Lopes com um passe algo manso nas costas da linha defensiva do Sporting, que teve os três centrais preocupados em cobri-lo e, fatalmente, Matheus Reis, o mais afastado da ação que acorreu à zona da bola como se fosse o último homem. O desnorte na abordagem deixou o brasileiro do Santa Clara solto e com a bola a jeito para fuzilar (33’) a baliza na única vez que os açorianos a alcançaram. O ritmo pesaroso do Sporting batia-lhe em cheio no próprio queixo.
Na sua oportunidade de interferir no jogo, João Pereira trocou a complicação de Marcus Edwards nas suas ações com bola, pouco prático a decidir o que lhe fazer, pela presença de Conrad Harder no centro-esquerda. Na ala direita, abdicou de um Geovany Quenda nesta noite incapaz de sair a sorrir no um para depositar Catamo no seu lado preferencial e ter Maxi Araújo a dar largura à esquerda. Se a equipa não funcionava por dentro, iria então tentar por fora.
Era por aí, mas não exclusivamente por aí, que o Sporting poderia obrigar o Santa Clara a estender o seu bloco, forçar espaços entre os adversários e variar, sobretudo diversificar as suas tentativas de ataque à área. Com Araújo aberto na esquerda, Harder espreitou os half spaces entre os defesas, Catamo do outro lado encarava e ia para cima, Daniel Bragança fez-se mais irrequieto, querendo a bola e tentando passá-la com outra pressa. Sentia-se a urgência nos leões.
Cedo se percebeu que a inoperância coletiva seria imune a estas vontades. O Sporting imergiu também na segunda parte, sem forma de contornar a coesão defensiva de um Santa Clara disposto a resumir-se a isso, organização e sofrimento, a jogadores a festejarem cortes na área e a inspirar-se em Luís Rocha, central de 38 anos, carapaça tão calejada de tantas tardes e noites assim, que levou a ‘luta’ ao corpo de Gyökeres e quase domesticou um avançado badalado como indomável. Na única vez que o perdeu de vista, a suficiente para uma fatalidade, a cabeça do sueco pretenderia fazer a bola cruzada por Harder marrar em fúria contra a baliza. Deu-lhe de raspão, ela saiu ao lado do poste.
No desalento de Gyökeres, estendido na relva incrédulo, extraiu-se não o bulldozer habitual que já vimos a barafustar no final de jogos, faminto por mais golos além dos vários que tinha marcado, mas um corpo algo impávido, não derrotado, sim quase descrente do que estava a suceder. Essa impressão visitou outros corpos na noite de Alvalade.
O até há pouco tempo infalível Trincão, maior catalisador de jogadas de perigo e desbloqueadores criativos de problemas, formiguinha pronta a colocar os ataques a rolar sem hesitações, deixou uma pálida exibição contra o Santa Clara, emaranhado em dribles falhados, tabelas não conseguidas e raides com a bola cortados por adversários. Como Gyökeres, abafado por Luís Rocha e uns açorianos que baniram os espaços na profundidade do estádio, mas mal servido por uma equipa que jamais criou condições para o sueco aparecer no jogo. Com o sueco anulado, apenas se viu uma cabeça de Diomande num canto que nem à baliza foi.
O Sporting forçou e insistiu, os jogadores no campo a cederem à pressa desmiolada, os que estavam no banco em pé, a incitá-los com alento. Cada minuto contado parecia reforçar a ansiedade dos leões e acentuar as trocas de bola redundantes, que iam à esquerda, ao centro do campo e à direita, depois da direita ao miolo e de volta à esquerda. Neste tempo de julgamentos à boleia de perceções, várias das captadas em Alvalade convergiam num ponto: mais do que confiantes no plano e donos de clareza para dar a volta à intempérie, os jogadores do Sporting pareciam perdidos, quase rendidos ao desespero.
Órfão de um rasgo que fosse, sem um golpe de asa isolado do marasmo que lhe valesse, o Sporting ainda consentiu que Daniel Borges, a insistir entre três jogadores, vendo-se livre deles de repente, se precipitasse com o seu pasmo e falhasse o segundo golo do Santa Clara na melhor oportunidade que se viu, já a acabar. Nos gordos descontos que haveria, a surpresa acentuar-se-ia quando Viktor Gyökeres, num livre em que os leões arrastaram atenções para a direita de modo a haver uma auto-estrada de passe para o sueco, na área, recebeu a bola atabalhoadamente, tão lento e fora de si que tal nem chegou a ser um lance.
A roçar o irreconhecível, o Sporting acabaria por sofrer o que nunca está muito longe, mas, bruxaria das impressões, parecia uma miragem há tão pouco tempo. Ano e meio depois, os leões voltaram a perder para o campeonato em Alvalade, onde não tinham um jogo sem golos marcados há 27 meses. Se a obesa goleada de 1-5 imposta pelo Arsenal, a meio da semana, vestiu a atenuante do adversário que a impôs, esta derrota contra o Santa Clara, quarto classificado do campeonato, porém munido de nada mais do que um bloco baixo, fiel à organização defensiva, poderá fazer badalar uns quantos sinos de alarme. Pelo menos, erguer sobrancelhas de desconfiança.
O Sporting ficou à beira das 12 vitórias seguidas no campeonato, portanto igualou a melhor série da história sem a superar. Haverá a devida ressaca, o luto necessário para o qual o futebol não concede tempo para mais do que uma noite mal dormida. Há várias noites que o processo de superação parece incidir noutro episódio - o da separação com o antigo treinador. O poder dessa sugestão surgirá agora com mais força.