Como surgiu a ideia de se criar este Grupo de Trabalho da Medicina Interna?
A ideia partiu da Ordem dos Médicos e surgiu por ter havido muitas vagas de Medicina Interna (MI) que, no último concurso para escolha da especialidade, não foram preenchidas. Estamos a falar de quase 50%! A especialidade não tem a preferência dos jovens médicos e com este grupo pretende-se analisar o que poderá levar a esta conjuntura e o que se pode fazer para que a MI volte a ser atrativa. A equipa é composta por cinco elementos do Colégio da Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos e por outros cinco da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
Cerca de 50% é uma percentagem muito elevada…
Sim, sem dúvida! Há zonas onde se notou mais esta falta de atratividade, em particular na região de Lisboa e Vale do Tejo. Ficaram por preencher 58,1% das vagas disponíveis (144), sendo que em sete hospitais nenhuma foi ocupada. Em hospitais como a ULS Santa Maria e ULS São José foram, ao todo, 24! E há algumas unidades que não recebem um único interno há 3 anos!
É a primeira vez que isto acontece na MI?
Com tal intensidade, sim. Noutros anos, já se havia notado que alguns hospitais não conseguiam ocupar todas as vagas, mas este ano foi o mais grave de todos.
O que está a levar a esta falta de interesse? Até há pouco tempo, além dos privados, também as próprias parcerias público-privadas (PPP) investiam na MI…
É preocupante o que se passa, porque a MI é estruturante no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e mesmo no Sistema Nacional de Saúde. E tem a sua lógica, já que a MI tem uma visão global do doente e essa perspetiva holística aplica-se muito à atual conjuntura sociodemográfica. A sociedade está cada vez mais envelhecida, o que é bom, por ser um sinal de desenvolvimento, mas por outro lado, isso contribui para que haja cada vez mais pessoas idosas com multipatologia, polimedicadas, por não se ter apostado na qualidade de vida. A função de um especialista de um único órgão torna-se curta para avaliar estes doentes. E A MI, com a sua visão abrangente, tem um papel primordial.
Há quantos anos é médico internista?
Há 35 anos.
E ao longo destas décadas, na sua perspetiva, o que poderá estar a contribuir para o estado atual da MI?
A MI, desde sempre, tem tido altos e baixos, porque da MI emergiram todas as outras especialidades médicas. Por exemplo, por volta dos anos 70 a 80, começaram a surgir a Pneumologia, a Nefrologia, a Cardiologia, entre outras. E essa saída de alguns internos do seio da especialidade enfraqueceu-a um pouco. Mas, posteriormente, reagrupou-se e reemergiu nas décadas de 90 e no início deste século. Nos últimos 10 anos, já se tem notado algumas dificuldades. É natural que a Medicina e a Ciência evoluam e a MI só tem que se adaptar a essas mudanças. Pessoalmente, acredito que a não reorganização do SNS foi o que mais influenciou negativamente a Medicina Interna. O SNS foi um sucesso – talvez o maior do 25 de abril de 1974 -, mas, desde a sua criação, não houve uma adaptação às mudanças e necessidades da população. Foi-se mantendo um pouco anquilosado e a MI foi a que mais sofreu com isso. Repare-se que a Urgência tem sido suportada, sobretudo, pela MI, o que obriga a uma sobrecarga enorme de trabalho para os médicos internos, que ficam sem tempo para as suas restantes funções, tais como na Consulta Externa, no Internamento, entre outras.
Com a avalanche de necessidades do serviço de Urgência, acabou-se por se desestruturar os próprios serviços de MI. A grande causa, na minha opinião, desta não preferência pela MI, deve-se a esta conjuntura. O internista gosta de fazer urgência, mas também de seguir doentes, de fazer diagnóstico, de se dedicar a outras áreas. Além disso, fazem-se muitas noites na Urgência, o que não permite conciliar a vida profissional com a vida pessoal, sobretudo para quem quer ter filhos. As pessoas têm direito à vida pessoal!
E a questão remuneratória?
Também contribui, mas esse é um problema mais global, de todas as especialidades.
“Com a avalanche de necessidades do serviço de Urgência, acabou-se por se desestruturar os próprios serviços de MI”
Falta organização, mas até que pouco esta mudança não se deve ainda à forma como as novas gerações gostam de conciliar vida profissional com vida familiar?
Sim, também influencia a decisão. Os jovens que vão iniciar uma carreira médica, hoje em dia, não são iguais aos da minha geração. Não considero, contudo, que não têm espírito de compromisso, como dizem alguns colegas. Não acredito nisso. Penso que eles querem envolver-se, mas para tal tem de haver algum tipo de compensação, especialmente em termos de realização profissional – não somente monetária. O problema não está na faixa etária em si, mas no sistema que não lhes oferece aquilo a que têm direito.
Como se poderia melhorar a Rede de Referenciação Hospitalar de MI, um dos pontos abordados neste grupo de trabalho?
Essa Rede foi criada em 2017, mas nunca foi publicada, apesar de ser importante para se definir as funções da MI no sistema de saúde e o que deve ser o papel do internista. Nos últimos anos, os hospitais e, em particular a MI, vivem para a Urgência. Isto não pode ser! A Urgência existe para ver os doentes que realmente precisam de lá ir. Cerca de 50% vão e têm razão para ter apoio médico, mas devem ser assistidos fora do hospital, nos cuidados de saúde primários. Está previsto que o internista faça 12 horas semanais [nas urgências], mas nalguns hospitais chegam às 48 e 72 horas por semana! Isto desestrutura a vida das pessoas e os próprios serviços de MI. Fazer urgências pesadas, muito exigentes, esgota-nos física e mentalmente. E para recuperar – tenho experiência nisso – não é fácil… Repare, os internistas não querem deixar de fazer urgência; apenas pedem tempo para ver doentes em consulta e no internamento, dedicando-se ainda a áreas como Diabetologia, Geriatria, Cuidados Paliativos, entre outros. Esse é o papel do internista, que tem uma visão holística do doente.
E como é possível estar-se há anos à espera da aprovação de uma Rede de Referenciação Hospitalar? Entretanto até já deve estar desatualizada…
Fiz parte dessa Rede e, de facto, ainda a aguardamos…Porquê? Isso ultrapassa-nos, tem a ver com o Ministério da Saúde.
Com as ULS, a situação das Urgências poderá melhorar, pelo menos no que diz respeito aos doentes ‘azuis e verdes’, ao encaminhá-los para os cuidados de saúde primários?
A ULS, na minha opinião, é um bom modelo de integração de cuidados. Se for bem implementado, vamos aproveitar os seus benefícios e vamos ser mais eficientes. Esta reforma pode ser importante para oferecer a esses doentes uma resposta nos cuidados primários. Isso irá libertar, com certeza, os internistas.
“A diferenciação na Medicina é uma inevitabilidade da sua evolução e a MI tem de se adaptar. O que nunca vai mudar é a necessidade de haver uma visão global do doente”
Esta atual situação poderá, de alguma forma, levar a que se crie a especialidade de Medicina de Urgência?
Essa questão está ainda em discussão, inclusive na OM… É importante dizer que, mesmo que isso venha a ser uma realidade, não se vai conseguir dar uma resposta efetiva nas urgências nos próximos 10 anos. Ainda é preciso formar as pessoas, por isso não se pense que vai resolver já o problema. Poderá vir a ser um apoio, mas noutro modelo, segundo o qual só vai a esse serviço quem realmente tem necessidade e não aqueles com doença aguda de pouca gravidade.
E a Geriatria? Também poderá ser mais uma especialidade?
Caso surjam outras especialidades, a MI não irá ficar fragilizada por causa disso. A diferenciação na Medicina é uma inevitabilidade da sua evolução e a MI tem de se adaptar. O que nunca vai mudar é a necessidade de haver uma visão global do doente. Aliás, quanto mais fragmentada for a Medicina, mais fundamental é a visão holística do internista. Há muitos doentes com multipatologia, assim como vários superespecialistas, e o doente continua a ser apenas um, precisando de um médico que reúna todas as peças. A MI tem futuro, apesar da atual crise, porque consegue ter essa visão abrangente, não apenas de um órgão!
Além da reestruturação da Urgência, o que deve ser dado aos mais jovens para que se sintam mais atraídos pela MI?
A MI é uma especialidade essencialmente de raciocínio clínico e, para tal, temos que ver o doente e manter o seu acompanhamento, nunca esquecendo que o internista tem capacidade e interesse em poder subespecializar-se em determinadas áreas específicas. Isto não pode faltar! Outro ponto essencial a que se deve dar atenção é a investigação. Portugal tem bons resultados em trabalhos de ciência básica, mas, em termos de investigação clínica, está muito atrasado. É preciso apostar neste campo, disponibilizando tempo e estruturas hospitalares de apoio. E, obviamente, a compensação salarial também é outra vertente que faz a diferença na hora de escolher, daí se defender a discriminação positiva, como como acontece na Medicina Geral e Familiar, por causa da dedicação exigida e da sobrecarga de trabalho. Acresce ainda a necessidade de reformular a carreira médica hospitalar, tornando-a mais atrativa, de modo que os jovens médicos sintam que no futuro terão condições para evoluir e atingir, quando justificado, o topo da carreira.
“O internista nunca deve achar que a sua missão é apenas produzir atos, é um contínuo, um sacerdócio (com compensações, obviamente), por isso recomendo a todos os jovens internistas que não deixem cair o espírito de missão humanístico”
Nalguns países aposta-se na flexibilização horária, o que tem atraído muitos jovens. Poderia ser também uma solução para Portugal?
Pode ser uma possibilidade, desde que seja positiva para o sistema de saúde, em particular para o doente. Em Espanha têm adotado essa flexibilização. É algo positivo, mas não pode pôr em causa o espírito de grupo, quer dentro da MI quer com outras áreas e outros profissionais (enfermeiros e técnicos). Ser médico não se cinge à produção de atos isolados; estes devem ser integrados.
O que gostaria de dizer aos jovens internistas ou a quem vai escolher a especialidade?
A Medicina tem uma parte de Arte, que é o humanismo: é preciso saber comunicar, estabelecer contacto com cuidadores e ou familiares. O internista nunca deve achar que a sua missão é apenas produzir atos, é um contínuo, um sacerdócio (com compensações, obviamente), por isso recomendo a todos os jovens internistas que não deixem cair o espírito de missão humanístico de se ser médico, sobretudo na era da tecnologia e da Inteligência Artificial (IA). A IA vai substituir-nos em muitas coisas, mas não no humanismo.
Maria João Garcia
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