Não existe qualquer previsão legal específica deste tipo de burla – vulgarmente chamada de burla sentimental ou romântica -, a qual terá de incluir-se no âmbito de previsão do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal.
Nos termos deste preceito legal “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
O crime de burla é um crime contra o património, que se desenrola através do uso de artifícios, enredos e manipulação suscetíveis de, em cada caso concreto, enganar o outro, levando a que seja a própria vítima a efetuar os atos de disposição patrimonial lesivos.
Porém, na burla sentimental, a indução em erro ou engano, com vista ao enriquecimento ilegítimo, é perpetrada através de um modo suis generis: o uso e exploração da afetividade e dos sentimentos de outrem.
Ora, foram inúmeras as mentiras, artimanhas e artifícios levados a cabo por Simon Leviev para prosseguir os seus intentos: desde fazer-se passar por milionário e herdeiro do magnata de diamantes Lev Leviev e, numa primeira fase, a vestir a pele de um namorado carinhoso, sensível e dedicado às suas vítimas, levando-as a acreditar estarem a viver um verdadeiro conto de fadas…
Assim que as sentia “sentimentalmente capturadas”, dava início à chantagem emocional, desta vez através de tramas e enredos dramáticos, para conseguir os empréstimos almejados que, sempre conseguia! E, note-se, mesmo, na perspetiva de vítimas cumpridoras de deveres de diligência e de autoproteção, nem haveria nada a desconfiar… Elas já tinham visto o abastado estilo de vida de Simon, pelo que não haveria como não acreditar que ele pagasse os empréstimos.
Nesta conformidade, a atuação de Simon Leviev deverá ser igualmente sancionada pela violação de Direitos de Personalidade das vítimas, como o direito à honra, à integridade psíquica e moral - corolários do princípio da dignidade da pessoa humana - daí resultando sérios danos na autoestima das vítimas e, consequentemente, medos nas suas relações interpessoais, como o de voltar a confiar, de voltar a relacionar-se, etc. –porventura mais graves e penosos que os danos materiais, pois que alteram a identidade psíquica e emocional da vítima.
Assim e ainda no plano jurídico-criminal, a conduta de Simon é, também, subsumível ao crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, atendendo a que o mesmo abrange qualquer tipo de abusos – desde físicos, financeiros, sexuais, psicológicos e emocionais– existentes quer no casamento, quer na união de facto ou mesmo entre namorados e ex-namorados.
Paralelamente, no âmbito cível, a vítima pode – e deve - deduzir pedido de indemnização cível, enxertado aos autos crime ou em separado, a fim de ser ressarcida dos danos materiais e morais infligidos, o que fará nos termos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, prevista no artigo 483.º do Código Civil, devendo, para o efeito, alegar e demonstrar a conduta ilícita e culposa do agente, os danos sofridos, e o respetivo nexo causal.
Pese embora se encontre prevista, no nosso Ordenamento Jurídico, a responsabilização criminal e cível pela prática do crime de burla praticada nestes moldes, a verdade é que em torno deste tipo de crime paira uma significativa impunidade, – favorecida tanto pela inércia das vítimas, quanto pelas dificuldades probatórias que os casos enfrentam – a que o caso de Simon Leviev não foi exceção: o burlão ficou impune das diversas burlas sentimentais que praticou contra mulheres em diversos países, burlando-as, com estes métodos, em cerca de 9 milhões de euros, sendo que, até então, a sua única punição por estes crimes parece ter sido a sua expulsão da aplicação de relacionamentos Tinder.
Por tudo quanto se expõe e de jure condendo, parece-me premente que, a par das circunstâncias qualificantes do crime de burla ínsitas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal., se inclua a previsão da exploração da vulnerabilidade e da confiança das vítimas, no contexto das relações amorosas, com o consequente agravamento da moldura penal, como forma, não só, de aumentar a punição destes crimes, como ainda de dar maior segurança e certeza jurídicas às suas vítimas, incentivando-as, inclusive, a denunciá-los.