Quantas vezes é que em reflexões e discussões sobre estratégias de combate à corrupção, umas mais formais que outras, ouvimos ou lemos que o que faz falta na sociedade portuguesa são pessoas com ética. Queixam-se de falta de seriedade e ética individual, como se os valores do indivíduo fossem o quadro de referência que, multiplicado por milhões, determinasse o bom ou mau funcionamento das sociedades. Encontramos aqui, pelo menos, dois equívocos! Ambos com repercussões negativas, muito práticas, no esforço de promoção de uma cultura de integridade em Portugal.
Quando nos finais do século XX o conceito de ‘capital social’ – qualidade e tipologia dos laços sociais -, introduzido por Lyda Hanifan no início desse século, se popularizou, uma das questões centrais que se colocou foi: é útil ou não para o desenvolvimento da economia e das sociedades? Se o ‘capital financeiro’ e o ‘capital humano’ são variáveis importantes para o desenvolvimento, então o ‘capital social’ também o deveria ser. Not so fast!... depende!
O ‘capital social’ pode ser de dois tipos: ‘bonding’ ou ‘bridging’. O ‘bonding capital social’ é constituído por laços fortes e de proximidade, mas são laços redundantes (família, colegas próximos, amigos de infância). Ao invés, o ‘bridging capital social” é constituído por laços sociais mais frágeis, mas que fazem a ponte com novas pessoas, novas ideias e oportunidades. Enquanto o ‘bridging’ é mais arriscado a nível individual, mas mais útil para o desenvolvimento coletivo pelas possibilidades de retorno agregado, o ‘bonding’ promove o nepotismo, o caciquismo, a redundância, e a desigualdade. Esta dualidade de (in)utilidade aplica-se também ao argumento da ‘ética individual’ no combate à corrupção. Na verdade, tanto pode ser útil como prejudicial.
Equívoco #1: Valores vs. Ação
A ética individual não se define apenas por um conjunto de valores em que a pessoa acredite e/ou advogue. A definição de ética inclui as ações, estejam estas, ou não, alinhadas com os valores que lhes precedem. Apesar de Jane Addams, ativista e laureada com o Prémio Nobel da Paz em 1931, advogar que “a ação é o único meio de expressão da ética”, na verdade a ética individual confronta-se com conflitos internos entre valores e comportamentos.
Para o combate à corrupção e, de uma forma mais geral, para o bom funcionamento da sociedade e das suas instituições, importa muito mais a ação/comportamento de cumprimento de regras e leis, aplicadas a todos, do que o tipo de valores individuais que cada um possa ter. Quantas vezes não cumprimos leis que discordamos delas e que, muitas delas, contrariam os nossos valores?
A utilidade prática de distinguir ‘valores’ de ‘ação” torna-se, assim, óbvia. Deixa de ser prioritário, para efeitos da promoção de uma cultura de integridade, tanto o apelo a valores e consciências individuais como o esforço para os educar/uniformizar.
Equívoco #2: a (in)Utilidade dos Valores Individuais
Não há dúvida que os valores são importantes no combate à corrupção, mas não pelas razões que se invocam. Na prática, a forma como o argumento dos valores individuais é utilizado é prejudicial para a promoção de uma cultura de integridade em Portugal.
Imagine-se que tínhamos em Portugal 5 milhões de pessoas mais integras e 5 milhões de pessoas menos integras. Pela lógica do argumento “se as pessoas fossem mais éticas haveria menos corrupção” teríamos 5 milhões de conjuntos de valores a discernir em cada situação o que é certo ou errado. A menos que se admita que estes 5 milhões de pessoas (ou 1 milhão, ou 100 mil, ou 10 mil ou mil) pensem exatamente de igual forma, do ponto de vista prático não faz sentido remeter para valores individuais o bom funcionamento da sociedade e das suas instituições.
A utilidade dos valores individuais para a promoção de valores coletivos (ex. uma cultura de integridade) depende do grau de ativação cívica de quem nos referimos. Os valores individuais de pessoas que se demitem de (optam por não) exercer uma cidadania ativa têm muito menor utilidade para o bem comum. As suas ações e comportamentos (respeitar ou não as regras e instituições) têm muito mais utilidade. Os valores individuais ganham muito maior relevância se o ator considerado for o cidadão ativo (seja um político, ator social, lobista ou outro de caráter agregador) -- a pessoa individual, que movida pelos seus valores e princípios se posiciona para agir tanto sobre iniciativas legislativas de combate à corrupção como em grupos que as apoiam ou não.
Tabela: Utilidade de Conceitos como Argumentos no Combate à Corrupção
O problema prático é que o argumento dos valores individuais (ou da consciência de cada um) remete para a subjetividade intrínseca a cada pessoa e, por extrapolação do somatório destas, à sociedade em geral. Efetivamente, não tem utilidade prática, antes pelo contrário, esperar que o somatório de valores individuais ajude no combate à corrupção. No limite, e por muito contraditório que possa parecer, nem a responsabilidade de discernimento individual (caso-a-caso, hora-a-hora, minuto-a-minuto) deve ser passada para a pessoa.
Solução para os Equívocos: 4 momentos
A responsabilidade maior deve ser depositada no (1) cidadão ativo que (2) pode influenciar a configuração formal do conjunto de normas, regras e leis de funcionamento em sociedade -- a dimensão institucional -- as quais, por sua vez, (3) têm o potencial de influenciar o comportamento e ações de todos as pessoas (sem que, forçosamente, tenha alguma influência nos valores destas), e que, consequentemente, (4) determinará o bom funcionamento, ou não, da sociedade e suas instituições.
A tónica de promoção de uma cultura de integridade não deve incidir em valores individuais, mas nas condições para que, independentemente de idiossincrasias atomísticas ou tribais de cada pessoa, todos atuem e se comportem em torno de uma ética coletiva: o conjunto de regras igualmente aplicáveis a todos e os comportamentos individuais que estas fazem prever. Mais do que os valores individuais da pessoa, o mais útil em termos do bom funcionamento da sociedade e suas instituições é se ela cumpre/obedece, ou não, à ética coletiva. E a probabilidade de cumprimento está muito mais associada a propensões ao risco de incumprimento do que a consciências individuais.
Não se está a fazer a apologia de uma vida em sociedade mediada pelo medo do não cumprimento. Propõem-se uma vida em sociedade em Portugal menos assente na fé na bondade dos valores e consciências individuais e mais alicerçada em mecanismos de fiscalização e penalização pelo não cumprimento (da não ação) da ‘ética coletiva’, esta sempre sujeita a evolução, por via das lideranças.
André Corrêa d’Almeida é professor adjunto na Universidade de Columbia, em Nova Iorque e fundador e presidente da Associação All4Integrity.