Mais do que motivo de exultação ou desespero, ser português (ou viver em Portugal, se preferir) tem sido, salvo exceções muito datadas, um prolongado bocejo. Por feitio ou contingência, que só em certos círculos de poder se desconhece – e quem conhece colhe daí fáceis dividendos –, o bom povo tem como ambição maior que o deixem em paz.
A ideia de ter dias previsíveis, sem picos de ansiedade ou sobressaltos próprios da vida que nos acontece sem que a consigamos controlar, constitui o limiar da ambição e a despreocupação torna-se afrodisíaca.
Sem que pudesse saber, através de uma das personagens de Almas Mortas, Gógol fez o retrato psicológico do “homolusitanus”: alguém que, para lá da apatia, só Deus pode dizer que carácter tem e passível de agrupamento sob as designações de “nada de especial”, “nem uma coisa nem outra” ou “nem carne nem peixe”.
Ao cidadão-pátrio não apanharão com certeza na disforia do fracasso porque também nunca o verão toldado pelo arrebatamento do sonho. Basta que se vá andando, um dia após o outro e assim sucessivamente. O marasmo mental é o habitat natural do “português de bem”, aquele que se enjoa com um suave cheiro a novidade e que recusa sem pestanejar a mera hipótese de mudança. As preocupações maiores deste hominídeo, além do salário ou da pensão ao fim do mês, são o buraco na estrada da sua rua, a quantidade de sal no bacalhau ou a que horas joga o Benfica no domingo.
O “homolusitanus” – seja ele o nosso mecânico, a nossa contabilista, a professora dos nossos filhos, o vizinho do terceiro andar ou nós mesmos – pode ser visto por uma certa elite política, económica e cultural como exótico. Ou até grotesco. Não lhe interessa. Não perde um segundo do seu precioso tempo com o rame-rame mediático. Não quer saber de coreografias partidárias em torno do Orçamento do Estado, não se preocupa com quadros tremendistas de comentadores nascidos em ecossistemas que lhe são estranhos, é indiferente às crises políticas que se anunciam em cada esquina e em cada noticiário e só reconhece os cavaleiros do Apocalipse quando tem de ir às urgências mais próximas, quando os filhos têm “furos” recorrentes nas escolas, quando faltam baterias aos barcos da Transtejo ou quando tem de aturar as filas na Segurança Social.
Para este espécime, é irrelevante se Luís Montenegro governa como António Costa, mantendo o Estado sobredimensionado e parecendo que o dinheiro brota como petróleo e é derramado sobre as classes mais barulhentas (quando não violentas) para as calar. Também lhe é indiferente se Pedro Nuno Santos abjura o passado recente, prometendo dar o que negou enquanto ministro ou recusando medidas que aceitou quando apostolava Costa. E também não franze o sobrolho quando André Ventura, no habitual registo de apóstata inimputável, se arvora em salvador da pátria e se disponibiliza para viabilizar um Orçamento que, julgará o próprio, exporá as infantilidades dos líderes do PSD e do PS.
Aos cálculos partidários, às cartas infrutíferas, às reuniões secretas, às pressões e aos recados das fontes de Belém, às intrigas palacianas, às futurologias superficiais dos analistas, às sondagens feitas em cima do joelho e aos cenários traçados em cima desses estudos de opinião o “homolusitanus” reage com a inquietação de quem vê um filme pela 25.ª vez: antecipa as cenas, sobrepõe-se aos diálogos, até que acaba por adormecer no sofá.
A letargia do cidadão-tipo é causa e consequência da nossa estagnação. É ela, porque incompatível com a exigência própria de gente viva, que repele os mais competentes e promove a ascensão de desbiografados. É ela, porque deitada sobre demagogia vazia e a infantilização do eleitorado, que autoriza a desgraduação do poder político. É ela, porque desinteressada dos princípios que balizam as democracias representativas, que compactua com a delapidação do prestígio das instituições. É ela, porque produto de um baldio moral, que contribui para erosão da autoridade de facto e de jure do Estado.
Mais brevemente do que presume, o “homolusitanus” poderá acordar com outra figura providencial a decidir os seus destinos, depois de quase uma década de pão e circo da sociedade Marcelo & Costa. Num país expurgado de referências, a hipocondria de Marcelo Rebelo de Sousa, a incompetência de Marta Temido e Graça Freitas e o oportunismo do anterior primeiro-ministro criaram o monstro Henrique Gouveia e Melo, cuja principal façanha foi gerir um programa massivo de vacinação.
Sob a sedutora farda, com reputação de inquebrantável, proveniente dos impolutos meios militares e sem que ninguém saiba no que acredita ou se, pelo menos, existe naquela cabeça algum vestígio estruturado de pensamento, o almirante tem todas as condições para vencer as Presidenciais do próximo ano. Bastará a promessa de que não vai aborrecer o bom povo com as maçadoras questiúnculas da política e dos políticos. E deixá-lo fruir o conforto pobrezinho do seu permanente “vai-se andando”. Ou desse esboço de vida.
Ex-jornalista e especialista em comunicação